It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

quinta-feira, março 09, 2006

Um novo presidente num único acto


Os convidados e a imprensa apinham-se na cerimónia de tomada de posse de mais um presidente. Os jornalistas procuram acercar-se da figura, que agora surge de entre as cortinas a um dos lados do palco, mas são prontamente rechaçados pela barreira compacta de seguranças.
- É um insulto à liberdade da informação! - clama de imediato um dos profissionais, vermelho como um pimento morrone.
Os colegas acenam concordantemente e dançam cinco segundos de tango.
O novo presidente acena aos jornalistas do palco, praticamente encoberto pelos microfones.
- Eis um gesto de simpatia do novo presidente! - anuncia, com os lábios colados à esponja do microfone, uma radialista.
Surge, do outro lado das cortinas, o primeiro-ministro, homem decidido, daqueles com muito poucas dúvidas ou enganos. Os dois homens cumprimentam-se, sorridentemente voltados para os flashes das câmaras. O primeiro-ministro decide acenar, também ele, mas a jornalista de há pouco mantém-se em silêncio. Atrás dos dois homens, posta-se uma linha quase têxtil de homens e mulheres em tons de cinzento, praticamente confundidos com as cortinas. O novo presidente declama o conhecido poema "Os passarinhos/Na Primavera/Fazem os ninhos/Para os seus filhinhos" e declara-se disponível para as perguntas dos jornalistas, a que chama "questões"...
- Senhor presidente! - adianta-se alguém - Como sabe, de acordo com dados recentes, Portugal encontrou-se entre os países que, no mundo inteiro, menos cresceram em 2005. O que propõe como forma de colmatar a situação?
- Da! - responde o presidente.
Todos se entreolham admirados. Mas não desarmam...
- Senhor presidente! - nova voz - De que modo propõe que se enfrente a carestia da vida, consubstanciada na subida imparável dos preços da gasolina, na ascensão em flecha dos juros para as famílias e indivíduos endividados e na possível subida acentuadíssima dos custos da electricidade no próximo ano, entre outros?
- Da! - responde o presidente. E sorri.
O espanto aumenta. Mas não desarmam, ainda assim. Outro jornalista intervém:
- Senhor presidente! Sendo a educação um dos factores mais importantes para o desenvolvimento de um país e os seus agentes extremamente importantes para o seu sucesso, como comenta o ambiente de total desânimo que parece grassar entre os docentes? Como comenta o facto de o aumento do número de horas de permanência na escola, reuniões a rodos e salários incomportáveis dos docentes não melhorarem os resultados globais dos alunos?
- Da! - diz o presidente, encolhendo brevemente os ombros e sorrindo uma vez mais.
Perpassa um burburinho incómodo entre todos os presentes. Mais uma intervenção:
- Senhor presidente! O que pretende fazer para evitar a pandemia de falências entre as nossas empresas, com o que acarreta de estagnação económica, inflação real e desemprego?
- Da! - afirma, pleno de convicção, o presidente.
O burburinho cresce e há mesmo quem necessite de primeiros socorros. Mas alguém lança ainda:
- Senhor presidente! Quais serão, segundo Vossa Excelência, as primeiras e mais fundamentais medidas para recuperar a confiança dos portugueses?
- Da! - responde o presidente. E começa a enumerar - Da! Da! Da! Daa!
Já é demais, não se compreende nada! O incómodo está definitivamente instalado. Perante a situação, um tradutor-intérprete é chamado aos microfones, pigarreia e fornece uma explicação:
- Peço imensa desculpa, mas o nosso presidente, assim como a generalidade da nossa classe dirigente, estiveram recentemente presentes numa acção de formação intensiva na ex-União Soviética, pelo que se torna difícil a readaptação à língua-mãe. Contamos com a vossa inteira compreensão...
Um suspiro de alívio percorre os presentes. Assim, sim. Tudo passa a fazer sentido.
Subitamente, entra pelas traseiras um grupo de mafiosos russos de óculos escuros e gorros de pele verdadeira, começando estes a servir copioso vodka a todos os que se encontram no hemiciclo. Alguém, lança o seu copo esvaziado para trás das costas, com tal energia que vai acertar em cheio na testa do presidente, ricocheteando de seguida pelas testas de todos os que se encontram no palanque. Nesse momento, a assistência em peso principia a dançar uma enérgica dança da Volga, confiantes no futuro de Portugal, mesmo apesar da seca.


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