It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

segunda-feira, março 27, 2006

Poéticas...


Tenho vindo a acompanhar atentamente as Breves Notas para uma Poética da Terminologia, de Jorge Melícias, no sempre interessante Da Literatura. Na sétima edição das mesmas, deparei com este poema, servindo como exemplo do que a poesia, para o poeta e autor, deve ser:


Consideremos o crime:
o modo como a navalha dele extrai
a própria mutação.
Porque todo o objecto aspira
a exceder a sua exactidão. A devir.


Afirma Jorge Melícias, estabelecendo a comparação com um outro poema que o antecede, no qual, de algum modo, se estabelece a tão recorrente ligação entre a representação artística e a memória: No primeiro exemplo o poema aproxima-se, ainda, de um anacrónico acto de genuflexão, de uma derradeira tentativa de absolvição da/pela memória. O uso de uma certa domesticidade para isso concorre e, embora esbatido, um tom melancólico é ainda perceptível. Estamos no domínio da afinidade emocional, do facilmente reconhecível e partilhável. Ao leitor é subtraída responsabilidade de maior no que respeita à interpretação, pela simples razão de que essa emotividade à flor da pele é, já em si, uma interpretação. Porque o poema chegou-nos, directamente, ao coração. E cristalizou.
Vejamos, de seguida, o segundo exemplo. Estou convicto de que só através da interpretação este poema poderá chegar ao leitor. Aqui o reconhecimento é uma conquista, não um dado adquirido. O sentir o poema vem (se vier) no fim. Antes terá que haver todo um trabalho de "botânica", de desconstrução e reconstrução do sentido.

Não pretendo estabelecer aqui qualquer espécie de “luta teórica em defesa das damas Memória e Sentimento (sensação)”, pelo simples facto de que creio que o autor facilmente me esmagaria com citações e outras coisas aparentemente óbvias, armadilhas naturais do intelecto puro, mas apenas tentar trazer o que gostaria de poder considerar algum equilíbrio ao debate…
Não é, de forma alguma, necessário ficarmo-nos nos “clássicos” – e “clássicos” pode, actualmente, significar expressões relativamente recentes. Sejamos um pouco transdisciplinares e encaremos outros meios da expressão dita artística… A música, por exemplo: a música dita concreta (não indo tão longe, porventura, que chegue à música electrónica ou a Jorges Peixinhos – porque todas as modalidades têm muitas correntes e extremamente diversas entre si), a dodecafonia, o minimalismo até… Em todos os seus melhores exemplos (e isto é, como sempre, uma opinião pessoal), em toda a contemporaneidade musical, deparamos com temas sem conta que, para lá do trabalho da escrita e do som, nos comunicam algo de imediato. Beleza, violência, todo o tipo de sentimentos por nós vivenciados – e não perdem em modernidade por isso. O mesmo sucede com a pintura… Do mais puro abstraccionismo pode brotar – e brota, certamente – um sem-número de sensações imediatas que nos captam e eventualmente nos levam a pretender ir mais longe, a compreender as camadas que se escondem sob aquilo que primeiramente é transmitido, sendo que o que é transmitido é suficientemente polissémico para ser apercebido de formas tão diversas quanto o número de espectadores; e mais, porque o próprio espectador sofre todo o tipo de flutuações. Compreender a técnica, interpretá-la, intuir e racionalizar sentidos, trata-se de atitudes que se vêm colocar em algum lugar além da imagem primeira. Também a arquitectura, aquela arquitectura que se possa efectivamente considerar como possuindo uma forte componente criativa, inclusive, vive em mais do que uma camada de leituras possíveis.
Tudo isto para debater questões estéticas… E, que diabo, não há nada mais subjectivo do que isso! Sim, eu sei, conheço bem a história do distanciamento, a observação absolutamente desencantada, a análise clínica do objecto em ambiente desinfectado, mas não será essa postura: a) anacrónica e datada, ela mesma; b) a negação teórica da função primeira da arte, a qual é, considero, a expressão viva do espírito humano nas vertentes possíveis? É que “We are the Robots” é um tema dos Kraftwerk, de que, aliás, gosto dentro da sua estética particular, mas não uma realidade humana maior (se é que me é permitido falar em lá o que seja essa coisa da “realidade humana maior”)…
Numa palavra, não acredito na funcionalidade e perenidade de formas de expressão artística que neguem a própria natureza de quem as gera: seres humanos, complexos poços de memórias passadas, presentes e futuras, transmissores e receptores natos de sensações que cada um pode reconhecer como suas (independentemente do abismo que possa mediar entre a intenção, também ela provavelmente dúbia, do criador e a leitura do receptor). Não compreendo que se extermine a camada primeira e mais obviamente necessária do objecto artístico, aquela onde se derrama e fervilha a seiva da existência, em nome de alguma obscuridade aparentemente mais trabalhada. Concordo que a estética do dia-a-dia com todo o seu cortejo de banalidades se estabeleceu momentaneamente e que o trabalho da linguagem – regressamos, aqui, à linguagem poética – passa, quantas vezes, para um plano secundário. Mas acredito que a força, a memória, sim, a memória, a capacidade de chegar directamente ao âmago humano, são essenciais no objecto artístico. Como acredito que o trabalho da linguagem é essencial. E a subjectividade. E a polissemia. O todo, todo o todo possível. É como a diferença entre um móvel apelativo e um móvel feito, digamos, por alguém como eu! Agora, a ausência de emoção (numa atitude esteticamente forçada, porque não natural), qualquer tipo de emoção, sem categorizações morais ou outras que passam, antes de mais, por noções sociais e não necessariamente artísticas, perde, penso eu, o poema, o romance, a composição, a tela, para a eternidade. Ou antes, quinze minutos decorridos, já ninguém pensa muito nisso…
Não tenciono transformar o It Takes Two num palanque para debate da teoria da estética… Precisava, simplesmente, de dizer isto. Porque gosto pouco do tipo de atitude que transforma todo o passado numa inutilidade. O futuro, pelo contrário, está muitas vezes de algum modo presente no passado. E vice-versa. Bolas, desgostam-me as atitudes estanques, embora também tenha, claro está, as minhas antipatias! Mas desgostam-me. Porque acho que o que tem qualidade tem sempre qualidade e que a moda é mais coisa dos críticos de jornal e das empresas.
E, depois de todo este relambório que espero que não vos tenha aborrecido, não deixem de visitar o Da Literatura. Vale sempre a pena.


Imagem de http://academics.smcvt.edu. (tela de Pollock)

2 Comments:

At 1:10 da manhã, Blogger Antonio Santos said...

Meu caro amigo.
Podendo concordar com o teu ponto de vista, penso que para um blogger a extenção do texto é demasiada.
O leitor de blog não é exactamente o que vai à livraria comprar um livro.
Confesso que, sendo teu fiel leitor, passei atravessado o texto.
Espero que esta crítica não seja mal interpretada, mas, apenas vista como um mero comentário, eventualmente, construtivo.
Abraços.

 
At 5:10 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Obrigado por me visitares! :)
Sabes, há textos mais pequenos, textos maiores, textos mais simples e mais complicados e ainda tudo o que interessa eventualmente a uns e não a outros... É a liberdade ecléctica do blog! Se assim, não fosse, o que faria das historinhas que tenho por cá publicado de vez em quando? Claro, era agradável receber milhares de visitas graças à publicação de frases bacocas de três linhas, como sucede por vezes... Mas não me apetece. E como ninguém me paga... Vou acreditando que te agradam umas coisas e não outras e ficando feliz pelas que te agradam. Abraço.

 

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