It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

sábado, março 25, 2006

Telemarketing num acto


Camilo fecha as torneiras, sai cuidadosamente do duche, retira a toalha azul do suporte e principia a secar-se. A música na sala já se calou, o que significa que passou tempo demais na banheira, mau em tempos de crise e ecologicamente incorrecto. Mas, que diabo, há que ter alguns prazeres... Seca as orelhas relaxadamente. Subitamente, escuta-se o toque do telefone. Ora bolas! Mas nunca se sabe se pode ser importante... Embrulha-se na toalha e corre para o aparelho.

Camilo - Estou?
Voz (pingando sorrisos de tonalidades várias) - Bom dia! Estou a falar com o proprietário da casa?
Camilo - Hã, sim...
Voz - Tenho o prazer de falar com o senhor...?
Camilo (após uma breve hesitação) - Desculpe, quem fala?
Voz - Tenho a honra de falar com o senhor Camilo Peçonha?
Camilo (surpreendido) - Hã, sim, mas...
Voz - Espero que esteja a ter um dia fantástico! Ligo-lhe para lhe dar os parabéns!
Camilo - Não é o meu aniversário...
Voz - Pretendo transmitir-lhe os meus mais sinceros parabéns por ter sido escolhido, numa amostragem de centenas de pessoas, para ser o nosso feliz contemplado com um brinde fantástico!
Camilo - Desculpe, mas...
Voz - Somos uma multinacional de renome, presentemente em fase de implantação neste belíssimo país, e o senhor foi seleccionado para ser o primeiro a tomar contacto com os nossos produtos exclusivos e ainda receber, gratuitamente, um brinde fantástico!
Camilo - Desculpe, mas o meu número é privado. Como o conseguiu?
Voz - É certo que se sente muito feliz por assim ter acesso exclusivo a esta oportunidade única! A que horas poderei visitá-lo para o presentear com uma demonstração absolutamente exclusiva?
Camilo - A que...? Desculpe, mas não tenho tempo.
Voz (rindo) - Alguém com as capacidades do senhor sabe que o tempo faz-se! De manhã, à tarde, à noite, inclusive de madrugada, tenho o máximo prazer em o cumprimentar pessoalmente!
Camilo - Ouça... Não estou interessado.
Voz (rindo de novo) - Como pode não estar interessado se nem conhece ainda a nossa oportunidade única?
Camilo - Eu...
Voz - Claro que está interessado em receber, gratuitamente, um prémio de um valor fantástico! A senhora da casa está?
Camilo (friamente) - Sou divorciado.
Voz - Normalmente, gostamos de conhecer a senhora da casa... Mas temos o máximo prazer em lhe garantir que, no seu caso particular, especial, único e exclusivo, tal não constituirá qualquer espécie de impedimento, bem pelo contrário! Daqui a dez minutos, poderei ter o prazer de o cumprimentar pessoalmente?
Camilo - Já disse que...
Voz - Pois ficamos extremamente felizes por o encontrar tão receptivo! Até já!
Camilo (contendo um pouco a irritação) - Mas se já lhe disse que não estou interessado!
Voz - Como não está interessado? Foi escolhido entre milhares de portugueses dos extractos superiores para receber, num absoluto exclusivo inteiramente gratuito, um maravilhoso brinde, único e fantástico!
Camilo - Vou desligar.
Voz - Constitui para nós uma alegria imensa encontrá-lo assim receptivo à nossa oferta e posso garantir-lhe que não se arrependerá!
Camilo - Caramba, você não ouve nada! Não estou interessado, vou agora mesmo sair e não tenho tempo nenhum!
Voz - Precisamente! O tempo é você que o faz! Os meus mais sinceros parabéns! Estarei aí em dez minutos e estou duzentos por cento certo de que , ainda hoje, todos os seus amigos, familiares e conhecidos estarão a morrer de inveja de si!
Camilo - Bom, com licença, vou mesmo desligar...
Voz - Então, até já! Sinceros parabéns!
Camilo (visivelmente irritado) - Com licença!

Pousa o auscultador energicamente. Malditas vendas por telefone! Regressa ao quarto de banho onde o vapor já se dissipou e recomeça a secar-se. Veste-se. Penteia-se. Toca a campainha. E agora, quem diabo será mais?

Voz (agora com um rosto de onde sobressai inteiramente o sorriso, estendendo firmemente a mão) - Muito bom dia e uma vez mais os meus mais sinceros parabéns! (estica o pescoço para o interior da casa) Posso entrar?
Camilo (espantado por o ver entrar antes sequer de obter resposta) - Ouça, senhor...?
Voz (irrompendo já pela sala de estar contígua) - Ora muito bem, excelente, excelente!
Camilo (segurando a porta da saída) - Caro senhor, agradeço-lhe que se retire!
Voz (enquanto despeja na carpete uma quantidade considerável de bugigangas, cuja utilidade real não se compreende) - Peço-lhe, então, senhor Camilo Peçonha, que me empreste a sua atenção máxima, uma vez que toda a sua futura felicidade, todo o seu futuro bem-estar, dependerão das opções que agora realizar!
Camilo (cada vez mais exaltado) - Quer fazer o favor de se retirar? Já lhe disse vezes sem conta que não estou interessado!
Voz - É assim mesmo, senhor Camilo Peçonha! Aprecio sempre alguém que, como o senhor, vai à luta, sabe o que interessa, reconhece as oportunidades e as agarra com unhas e dentes! O senhor é especial!
Camilo (dirigindo-se para o telefone) - Vou chamar a polícia... Que é isto? O telefone não funciona?
Voz - Tenho o maior prazer em lhe anunciar que tomámos a liberdade de lhe desligar o telefone para que nada de menos importante o possa distrair da verdadeiramente fantástica oportunidade a que o senhor Camilo Peçonha, seleccionado entre milhões de portugueses, tem a felicidade de ter acesso!
Camilo (aproximando-se com ar ameaçador) - Eu não costumo recorrer à violência, mas...!
Voz (desviando-se elasticamente e agarrando um saco cheio de pó, cujo conteúdo espalha sobre o sofá, a poltrona, a mesa e a carpete) - Faz muito bem em não ser violento, caro senhor Camilo Peçonha! Só a verdadeira inteligência conquista o mundo! Congratulo-me imensamente por verificar que é inteligente e conquistador!
Camilo (levando as mãos à cabeça, em atitude de desespero) - Que é que me fez à sala?
Voz (pegando num martelo e escavacando metodicamente o ecrã do televisor e os vidros da porta que dá para uma pequena varanda) - Nunca, senhor Camilo Peçonha, irá o senhor esquecer este momento inolvidável! O momento absolutamente único em que constatará a total eficácia do nosso produto e o valor incalculável do brinde exclusivo que para si reservámos!
Camilo (quase saltando no lugar) - É demais! Faça o que quiser! Vou-me embora! (dirige-se para a porta) Que é isto? A porta não abre?
Voz - Tenho o maior prazer em lhe anunciar, senhor Camilo Peçonha, que lhe encravámos momentaneamente a porta, para que nada de menor importância o possa distrair da fantástica demonstração a que seguidamente assistirá e que o deixará estarrecido por muito e muito tempo!
Camilo (lançando-se à voz de punhos fechados) - É demais!
Voz (desviando-se elasticamente e derramando líquido radioactivo sobre os móveis da sala) - Que alegria! Não é todos os dias que tenho o prazer imenso de contactar com alguém dotado de uma mente superior, como é o caso do senhor Camilo Peçonha! Sinceros, muito sinceros parabéns!
Camilo (frustrado e irritado) - Bolas! Mas, afinal, de que manicómio é que você se escapou?

Instala-se um breve silêncio. A Voz torna-se lúgubre.

Voz - Não há necessidade de recorrer a insultos! Achamos que ajudamos os outros e depois é... sempre isto! Ofereço-lhe a oportunidade de uma vida, uma oportunidade pela qual milhares de milhões de portugueses se bateriam e responde-me dessa forma?
Camilo (frisando cada sílaba) - Não estou interessado!
Voz (dirigindo-se à porta, numa postura muito erecta, com uma expressão de profunda e grave ofensa) - Julguei-o muito mal! Trata-se de alguém que não demonstra o mínimo respeito pelos outros! Muito bom dia!

Retira-se, fechando solidamente a porta atrás de si e some-se escadas abaixo. Camilo demora-se uns instantes, mudo e paralisado, a olhar para a sua sala de estar, o pó espalhado, os vidros escaqueirados, o líquido radioactivo derramado... Subitamente, corre para a porta, voa para o corrimão e lança, para o fundo das escadas, onde a Voz já chegou...

Camilo - Espere! E o brinde fantástico que me prometeu?
Voz (afastando-se) - O brinde, reservamo-lo para os nossos clientes, perspicazes e merecedores! Muito bom dia!

Fecha-se a porta da rua. Camilo, regressa à sala e percorre-a silenciosamente, de braços atrás das costas. Seguidamente, vai-se deitar de novo, esperando poder vir a acordar de um daqueles pesadelos absurdos que, obviamente, nada têm a ver com a vida real...


Imagem de www.fishtank.org.uk.