It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

domingo, junho 04, 2006

Imoralidades na proposta de assassínio dos professores de que o cidadão comum não se apercebe...


As imoralidades podem, inclusive, ser anticonstitucionalidades, mas parece que ninguém repara, ainda por cima num país onde as causas demoram anos a ser resolvidas - eventualmente - e, entretanto, já todo o mal está feito.
A avaliação dos pais não passa de uma frágil bomba de fumo para esconder o que de grave a proposta de assassínio dos professores e respectivas famílias contém. Õutros aspectos - até Miguel Sousa Tavares já nos surpreendeu na sua análise, quando afirmou algo como ser necessário ser um super-homem para cumprir todas as funções atribuídas aos docentes. Muito bem! Mas estamos, graças a Deus (ou ao diabo, porque não passa pela cabeça do demo, ele mesmo, propor coisas desse calibre), em Portugal - logo, trata-se de um pouco de fogo de vista de qualidade medíocre. Tomemos, antes, directamente da proposta governamental, um par de aspectos que têm passado despercebidos, mas que são de imensa gravidade...



Artigo 111º
Acumulações
1 – O exercício de funções docentes em estabelecimentos de educação ou de ensino
públicos é feito em regime de exclusividade.
2 – O regime de exclusividade implica a renúncia ao exercício de quaisquer outras
actividades ou funções de natureza profissional, públicas ou privadas, remuneradas ou
não, salvo nos casos previstos nos números seguintes.
3 –É permitida a acumulação do exercício de funções docentes em estabelecimentos de
educação ou de ensino públicos com:
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a) Actividades de carácter ocasional que possam ser consideradas como complemento
da actividade docente;
b) O exercício de funções docentes em outros estabelecimentos de educação ou de
ensino.
4 – Por portaria conjunta do Ministro da Educação e do membro do Governo
responsável pela Administração Pública são fixadas as condições e termos em que é
permitida a acumulação referida nos números anteriores.



Fala-nos este artigo numa estranha noção de exclusividade, comparável à escravatura e absolutamente distante da cómoda exclusividade de médicos ou juízes, mesmo da exclusividade existente em diversas empresas privadas...
O docente, extensivamente bem remunerado, como mais óbvio não poderia ser, vê-se impedido de exercer qualquer outro tipo de funções, remuneradas ou não, a não ser que ligadas directamente ao ensino e em situações muito específicas.
Não pode, assim, um docente publicar livros, participar em actividades artísticas com público, auxiliar gratuitamente instituições, fazer traduções ou o que mais vos passar pela cabeça. Limita-se o docente à sua vidinha medíocre e dedicada, empobrece-se o docente até limites inimagináveis, faz-se o que não se faz a mais ninguém... Pretende-se, desta forma, melhorar alguma coisa no ensino e em Portugal?



Progressão
1 - A progressão na carreira docente consiste na mudança de escalão dentro de cada
categoria e depende da permanência de seis anos no escalão imediatamente anterior,
computados como tempo de serviço efectivo em funções docentes, com avaliação do
desempenho de, pelo menos, de Bom, e ainda da frequência, com aproveitamento, de
módulos de formação contínua equivalentes, no mínimo, a 25 horas anuais, durante
aquele período.
2 - A progressão ao escalão seguinte da categoria produz efeitos no dia 1 do mês
seguinte àquele em que se encontrem reunidos todos os requisitos referidos no
número anterior.
3 - Semestralmente será afixada nos estabelecimentos de educação ou de ensino a
listagem dos docentes que progrediram de escalão.
1 -O recrutamento para a categoria de professor titular faz-se mediante concurso de
provas públicas de avaliação e discussão curricular aberto para o preenchimento de
vaga existente no quadro e destinada à categoria e grupo de recrutamento respectivo.
2 - Podem candidatar-se ao concurso de acesso à categoria de professor titular os
professores que detenham, pelo menos, dezoito anos de exercício de funções na
categoria com avaliação de desempenho igual ou superior a Bom.
3 - A atribuição de Excelente na avaliação do desempenho, durante dois anos
consecutivos, reduz em um ano o período de tempo exigido para acesso à categoria de
professor titular.
4 - A atribuição da classificação de Muito Bom, durante o mesmo período, reduz em
seis meses o tempo mínimo exigido para acesso à categoria de professor titular.
5 - O concurso a que se refere o nº1 consiste na apreciação e discussão pública do
currículo profissional do candidato e de um relatório elaborado para o efeito, incidindo
sobre o trabalho desenvolvido pelo docente, perante um júri de âmbito regional que
integrará professores da disciplina ou área disciplinar da categoria a prover, cuja última
classificação tenha a menção de Excelente, e ainda docentes dos estabelecimentos de
ensino superior da área geográfica respectiva.
6 - O número de lugares a prover nos termos do nº1 não pode ultrapassar a dotação
anualmente fixada por despacho do Ministro da Educação.
7 - As normas reguladoras do concurso de acesso são definidas por portaria do
Ministro da Educação.
8 -No acesso à categoria de professor titular, a integração na respectiva escala indiciária faz-se pelo escalão 1 dessa categoria.



Coloca-nos este aspecto perante a seguinte situação: uma imensa maioria de docentes, nomeadamente dos Quadros de Zona Pedagógica e dos agora propostos Quadros de Agrupamento, terão, como única perspectiva para toda uma vida de trabalho, o marcar passo eternamente, em função dos numerus clausus afixados pelos governos. Dir-me-ão que a situação económica mais não permite. Insistirei, como já tenho feito, que a situação económica é da responsabilidade exclusiva das classes política e pseudo-empresarial, ambas tendencialmente muito bem situadas na vida, e voltarei a perguntar: pretende-se, desta forma, melhorar alguma coisa no ensino e em Portugal?



Condições de progressão e acesso na carreira
Secção I
1- A componente lectiva a que estão obrigados os docentes dos 2º e 3º ciclos do
ensino básico, do ensino secundário e da educação especial é sucessivamente
reduzida de duas horas, de cinco em cinco anos, até ao máximo de seis horas, logo
que os professores atinjam 50 anos de idade e 15 anos de serviço docente, 55 anos
de idade e 20 anos de serviço docente e 60 anos de idade e 25 anos de serviço
docente.
2- Os docentes que completarem 60 anos de idade ou atingirem mais de 25 anos de
serviço docente, independentemente de outro requisito, do nível ou ciclo de ensino
em que leccionam, podem optar, mediante requerimento, por um dos seguintes
benefícios:
a) redução de quatro horas da respectiva componente lectiva semanal,
independentemente da categoria de que sejam titulares;
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b) aplicação do regime de trabalho a tempo parcial ou da prestação de trabalho por
semana de quatro dias, nos termos da lei geral, não estando sujeitos às respectivas
condicionantes e limites temporais.
3- As reduções da componente lectiva apenas produzem efeitos no início do ano
escolar imediato ao da verificação dos requisitos exigidos.
4 – A redução da componente lectiva do horário de trabalho a que o docente tenha
direito, nos termos dos números anteriores, determina o acréscimo correspondente
da componente não lectiva a nível de estabelecimento de ensino, mantendo-se a
obrigatoriedade de prestação pelo docente de trinta e cinco horas de serviço
semanal.



A presente proposta de alteração, como a anterior meramente economicista, destina-se exclusivamente a reduzir de modo exponencial o número de docentes, alargando a inquietação social causada pelo desemprego e pelas situações de deslocação forçada com o consequente mal estar, aumento das taxas de divórcio, separação de pais e filhos e mesmo impossibilidade de sobrevivência que não passe pela sopa dos pobres. Igual rumo toma a contagem das aulas nocturnas como horas diurnas, com o resultado óbvio de uma quebra sensível no número de docentes existente. Uma vez mais, interrogo: pretende-se, desta forma, melhorar alguma coisa no ensino e em Portugal?



Artigo 102º
Faltas por conta do período de férias
1 – O docente pode faltar um dia útil por mês, por conta do período de férias, até ao
limite de doze dias úteis por ano.
2 – O docente que pretender faltar ao abrigo do disposto no presente artigo deve
solicitar, com a antecedência mínima de cinco dias úteis, autorização escrita ao órgão de
administração e gestão do respectivo estabelecimento de educação ou de ensino.
3 – As faltas previstas no presente artigo quando dadas por docentes em nomeação
provisória apenas podem ser descontadas no próprio ano probatório.



Imensa controvérsia! Gerada, naturalmente, pelo espírito de inveja corrosiva que, ao longo dos séculos, tem servido de travão ao progresso em Portugal. Em Portugal, quiçá o país mais maoista do universo conhecido, nunca se adopta a lógica do nivelamento por cima, sempre se adopta a lógica raivosa do nivelamento por baixo. Em todo o caso, se as ditas faltas servem para descontar no período de férias, porquê tanta raiva? Com a máxima franqueza e candura, não se entende.
De resto, a proposta menciona a obrigatoriedade de avisar com cinco dias de antecedência que se pretende faltar por se sofrer de uma enorme enxaqueca repentina, por a electricidade ter falhado e o despertador não ter tocado, por o trânsito não ter permitido chegar a tempo ao toque da campainha e por aí fora... Vão-me perdoar, mas é surreal. Pretender-se-á, assim, expulsar profissionais competentes da docência por mais uma via ou, em alternativa, inundar as escolas de atestados médicos falsos? Conheço alguma coisa do privado. E é graças a esse conhecimento que posso asseverar que nunca no privado (embora admita que, naturalmente exista e ainda que nos estejamos aí, então, a concentrar nos piores e mais tacanhos exemplos) conheci tamanha rigidez.
Há ainda um outro aspecto importante presente neste artigo, o qual só poderá, eventualmente, ser entendido pelos profissionais da educação... Essa história das planificações. Querem planificações? Tudo bem. Mas qualquer docente com savoir-faire sabe perfeitissimamente que uma boa aula não é igual a uma linha de montagem. Será melhor seguir uma planificação rígida e que satisfaça os burocratas construtivistas ou deixar que a própria aula se conduza, em função das dúvidas existentes e das melhores estratégias para cada momento e cada assistência?
Temo dever interrogar uma última vez: pretende-se, desta forma, melhorar alguma coisa no ensino e em Portugal?
Por fim e sem por isso me declarar, de forma alguma salazarista, vejo-me forçado a traçar uma breve cronologia dos ditos artigos: com Salazar e Caetano (que nunca procuraram destruir os servidores do Estado, bem pelo contrário - e há que haver justiça ao falar nisso), havia direito a um total de dois artigos por mês, num total de 24, que não descontavam em coisa nenhuma; com Cavaco, os artigos foram reduzidos para 12, dois por mês, para desconto no período de férias, o que é aceitável; com Sócrates, Maria de Lurdes e respectivos assessores, pretende-se aniquilar por inteiro um antigo direito que, quer queiram quer não (aconselho-vos - e à ministra; e a Valter Lemos; e ao pai irritado que passou a fazer parte da sua equipa - a leccionarem no ensino não-superior, a leccionarem sequer: porque dar meia-dúzia de aulas no superior e escrever peças teóricas a vida inteira, não dá a ninguém a compreensão de coisa nenhuma e pode, inclusive, gerar uma certa arrogância nascida da mais perfeita ignorância, como sempre, atrevida), tem justificação.



Tenho, ocasionalmente, comprado Sócrates a Salazar. Há quem concorde - porque entende perfeitamente o que pretendo afirmar - e há quem me caia definitivamente em cima pelo que considera um sacrilégio. Nomeadamente, os esquerdistas, que gostam de ser muito puristas nessas coisas do fascismo. Claro que Sócrates não é nenhum Mussolini, se vamos mesmo ser muito puristas... O que Sócrates e o seu Governo fazem é praticar um tipo de autoritarismo que pode passar, inclusive, por cima da Constituição da República. Não me parece bem, por muito que entenda que Portugal está ingovernável. É claro que, na actual Europa dos 25, nem Berlusconi, nem o eleito austríaco cujo nome me escapa neste instante e muito menos Sócrates podem ser "fascistas". Podemos mudar de governo daqui a dois anos. Certo. E daí? Chama-se a isso democracia?
Ainda em defesa do (indefensável na maior parte, mas eu tenho a mania de ser simulteaneamente acutilante e científico) antigo regime, estabelecendo simultaneamente uma certa comparação com o nosso regime democrático, devo esclarecer um aspecto importante: o meu saudoso pai foi director de diversas escolas. Nunca por nomeação política. Ele era mais do género de desligar o televisor quando o Tomás começava a falar. Chegou, igualmente, a ser convidado para um cargo no ministério, em Lisboa, que declinou. E, no entanto, era mais do género de espingardar quando lhe enviavam convites para votar, nas alturas em que houve uma espécie de eleições, na ANP. Hoje em dia, todos o sabemos, de cada vez que muda um governo é altura de assistirmos a uma fantástica dança das cadeiras, digna de uma tela de Goya ou de um filme de Freddy Krueger. Será que há algo que não bate bem?