It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

sábado, outubro 07, 2006

Eça sobre o ME


- V. Exa decerto, sr. Sousa Neto, sabe o que diz Proudhon?
- Não me recordo textualmente, mas...
- Em todo o caso V. Exa conhece perfeitamente o seu Proudhon?
O outro, muito secamente, não gostando de certo daquele interrogatório, murmurou que Proudhon era autor de muita nomeada.
Mas o Ega insistia, com uma impertinência pérfida:
- V. Exa leu evidentemente, como nós todos, as grandes páginas de Proudhon sobre o amor?
O sr. Neto, já vermelho, pousou a chávena sobre a mesa. E quis ser sarcástico, esmagar aquele moço tão literário, tão audaz.
- Não sabia - disse ele com um sorriso infinitamente superior - que esse filósofo tivesse escrito sobre assuntos escabrosos!
Ega atirou os braços ao ar, consternado:
- Oh! Sr. Sousa Neto! Então V. Exa, um chefe de família, acha o amor um assunto escabroso?
O Sr. Neto encordoou. E muito direito, muito digno, falando do alto da sua considerável posição burocrática:
- É meu costume, sr. Ega, não entrar nunca em discussões, e acatar todas as opiniões alheias, mesmo quando elas sejam absurdas...
(...)
- E V. Exa de que gostou mais, de Paris ou de Londres?
Carlos realmente não sabia, nem se podia comparar... Duas cidades tão diferentes, duas civilizações tão originais...
- Em Londres - observou o conselheiro - tudo carvão...
Sim, dizia Carlos sorrindo, bastante carvão sobretudo nos fogões, quando havia frio...
O Sr. Sousa Neto murmurou:
- E o frio deve ser sempre ali considerável... Clima tão ao norte!...
Esteve um momento mamando o charuto de pálpebra cerrada. Depois, fez esta observação sagaz e profunda:
- Povo prático, povo essencialmente prático.
-Sim, bastante prático - disse vagamente Carlos, dando um passo para a sala, onde se sentiam as risadas cantantes da baronesa.
- E diga-me outra coisa - prosseguiu o sr. Sousa Neto, com interesse, cheio de curiosidade inteligente. - Encontra-se por lá, em Inglaterra, desta literatura amena, como entre nós, folhetinistas, poetas de pulso?...
Carlos deitou a ponta do charuto para o cinzeiro, e respondeu, com descaro:
- Não, não há disso.
- Logo vi - murmurou Sousa Neto. - Tudo gente de negócio.
(...)
Carlos e Ega foram os derradeiros a sair, depois de um brandy and soda, de que a condessa partilhou, como inglesa forte. E em baixo, no pátio, acabando de abotoar o paletó, Carlos pôde enfim soltar a pergunta que lhe faiscara nos lábios toda a noite:
- Ó Ega, quem é aquele homem, aquele Sousa Neto, que quis saber se em Inglaterra havia também literatura?
Ega olhou-o com espanto:
- Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imediatamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?
- Não sei... Há tanta gente capaz...
E o Ega radiante:
- Oficial superior de uma grande repartição do Estado!
- De qual?
- Ora de qual! De qual há-de ser?... Da Instrução Pública!



in Os Maias, cap. XII



Imagem original de www.rvj.pt.

1 Comments:

At 10:28 da tarde, Blogger BlueShell said...

Muito bem "apanhado"...e aproveitado este texto de Eça!

Beijo da concha...perdida no meio de serranias
BShell...0o0o0o00o0o0o0o00o0o0o0oo

 

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