Maria da Fonte revisited
O povo é como um desses monstruosos elefantes da Índia de que tenho ouvido contar: de uma pujança indomável e de uma simplicidade risível, o mundo inteiro, pela violência, não o pode obrigar a caminhar contra a sua vontade, e uma criança, pela astúcia, obriga-o a fazer cabriolas grotescas. O povo tem a força de um elemento e um regimento não lhe pode impor uma ideia que um simples advogado hábil em declamação lhe faz aceitar sem esforço. Isto eram verdades já velhas no antigo mundo helénico. Os Polignacs, os Guizots, os Cabrais, são portanto culpados, não de falta de civilização, mas de falta de astúcia. Para que se há-de combater um monstro invencível, quando é tão simples iludi-lo?
(...)
Os políticos da geração moderna compreenderam e aceitaram a grave lição da Maria da Fonte. O sistema da violência foi abandonado como inútil, e começou, com êxito, o dúctil método da habilidade.
O Conde d'Abranhos, com a sua alta intuição, sentiu que se estava preparando uma nova política, que, condizendo com o seu temperamento, seria o elemento natural em que a sua fortuna medraria como num terreno propício. Ele bem sabia que o Governo nada perdia do seu poder discricionário - mas que apenas o disfarçava. Em vez de bater uma forte patada no país, clamando com força: - Para aqui! Eu quero! - os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança própria e toda a admiração da plebe, curvando a espinha e dizendo com doçura: - Por aqui, se fazem favor! Acreditem que é o bom caminho!
Tomemos um exemplo: o eleitor que não quer votar com o Governo. Ei-lo, aí, junto da urna da oposição, com o seu voto hostil na mão, inchado do seu direito. Se, para o obrigar a votar com o Governo o empurrassem às coronhadas e às cacetadas, o homem volta-se, puxa de uma pistola - e aí temos a guerra civil. Para quê esta brutalidade obsoleta? Não o espanquem, mas, pelo contrário, acompanhem-no ao café ou à taberna, conforme estejamos no campo ou na cidade, paguem-lhe bebidas generosamente, perguntem-lhe pelos pequerruchos, metam-lhe uma placa de cinco tostões na mão e levem-no pelo braço, de cigarro na boca trauteando o Hino, até junto da urna do Governo, vaso do Poder, taça da Felicidade! Tal é tradição humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar um País, com o aplauso do cidadão e em nome da Liberdade.
Quantas vezes me disse o Conde ser este o segredo das Democracias Constitucionais: "Eu, que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a Soberania ao povo, que é forte e simples. Mas, como a falta de educação o mantém na imbecilidade, e o amolecimento da consciência o adormece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito... E quanto ao seu proveito, adeus, ó compadre!
"Ponho-lhe na mão uma espada; e ele, baboso, diz: eu sou a Força! Coloco-lhe no regaço uma bolsa, e ele, inchado, afirma: eu sou a Fazenda! Ponho-lhe diante do nariz um livro, e ele exclama, de papo: eu sou a Lei! Idiota! Não vê que por trás dele, sou eu, astuto manejador de títeres, quem move os cordéis que prendem a Espada, a Bolsa e o Livro!"
(...)
Tudo isto o sentiu num relance o Conde, quando, depois da Maria da Fonte, os ministérios da Força cederam o passo aos ministérios da Astúcia. A Maria da Fonte foi a introdução no Estado de uma nova táctica social.
(...)
Os políticos da geração moderna compreenderam e aceitaram a grave lição da Maria da Fonte. O sistema da violência foi abandonado como inútil, e começou, com êxito, o dúctil método da habilidade.
O Conde d'Abranhos, com a sua alta intuição, sentiu que se estava preparando uma nova política, que, condizendo com o seu temperamento, seria o elemento natural em que a sua fortuna medraria como num terreno propício. Ele bem sabia que o Governo nada perdia do seu poder discricionário - mas que apenas o disfarçava. Em vez de bater uma forte patada no país, clamando com força: - Para aqui! Eu quero! - os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança própria e toda a admiração da plebe, curvando a espinha e dizendo com doçura: - Por aqui, se fazem favor! Acreditem que é o bom caminho!
Tomemos um exemplo: o eleitor que não quer votar com o Governo. Ei-lo, aí, junto da urna da oposição, com o seu voto hostil na mão, inchado do seu direito. Se, para o obrigar a votar com o Governo o empurrassem às coronhadas e às cacetadas, o homem volta-se, puxa de uma pistola - e aí temos a guerra civil. Para quê esta brutalidade obsoleta? Não o espanquem, mas, pelo contrário, acompanhem-no ao café ou à taberna, conforme estejamos no campo ou na cidade, paguem-lhe bebidas generosamente, perguntem-lhe pelos pequerruchos, metam-lhe uma placa de cinco tostões na mão e levem-no pelo braço, de cigarro na boca trauteando o Hino, até junto da urna do Governo, vaso do Poder, taça da Felicidade! Tal é tradição humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar um País, com o aplauso do cidadão e em nome da Liberdade.
Quantas vezes me disse o Conde ser este o segredo das Democracias Constitucionais: "Eu, que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a Soberania ao povo, que é forte e simples. Mas, como a falta de educação o mantém na imbecilidade, e o amolecimento da consciência o adormece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito... E quanto ao seu proveito, adeus, ó compadre!
"Ponho-lhe na mão uma espada; e ele, baboso, diz: eu sou a Força! Coloco-lhe no regaço uma bolsa, e ele, inchado, afirma: eu sou a Fazenda! Ponho-lhe diante do nariz um livro, e ele exclama, de papo: eu sou a Lei! Idiota! Não vê que por trás dele, sou eu, astuto manejador de títeres, quem move os cordéis que prendem a Espada, a Bolsa e o Livro!"
(...)
Tudo isto o sentiu num relance o Conde, quando, depois da Maria da Fonte, os ministérios da Força cederam o passo aos ministérios da Astúcia. A Maria da Fonte foi a introdução no Estado de uma nova táctica social.
Eça de Queirós, in O Conde d'Abranhos
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home