It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

quarta-feira, novembro 16, 2005

O Verão Quente sem tretas de historiadores (2)

Como os estudantes estavam sempre, sempre ao lado do povo, o Verão Quente de 75, como aliás já em larga medida o que o antecedeu, foi fértil em acontecimentos revolucionários em estabelecimentos de ensino.
Lembro-me que tinha tido umas aulas gratuitas com um professor de História que decidira ceder o seu tempo para nos falar de arqueologias e assuntos afins. Quando lá chegámos, talvez em Outubro, talvez em Novembro, em todo o caso no início do ano lectivo de 1974/75, o Liceu D. Manuel II tinha mudado de nome para Rodrigues de Freitas, mas os "núcleos sindicais" estudantis (se bem me recordo, dominados por facções particularmente afectas à OCMLP e FEC (ML)), tinham, por seu turno, alterado a denominação para Amílcar Cabral. Quanto ao tal professor de História, tinha sido saneado e era agora conhecido como "o fascista Mário Augusto".
Basicamente, durante esse ano não houve aulas. Todos os dias havia RGAs (Reuniões Gerais de Alunos) no anfiteatro e estávamos dispensados das aulas para ir (ou não) a essas RGAs. Houve também três meses seguidos de greve. E não me lembro particularmente bem de qual fosse o limite das faltas. Mas lembro-me de que quando algum professor não queria ceder às nossas reinvindicações (como ter as carteiras à volta da sala durante um teste de Físico-Químicas por motivos pedagógicos), nós, os garotos do que actualmente é o 7º ano, logo clamávamos: "Fascista! Vamos fazer queixa aos Núcleos Sindicais!". Acreditem, o teste fazia-se com as carteiras à volta da sala... Alguns professores encaneceram bem dramaticamente no prazo de um ano lectivo. Outros, percebiam melhor as regras do jogo, como um professor de Educação Física que dava dispensa a todos os que a desejassem. De qualquer modo, nem valia a pena ninguém esforçar-se muito... No final desse ano, as passagens foram administrativas, inclusive para os finalistas de medicina e engenharia (será por isso que aquela varanda caiu mal os compradores de um andar lá puseram os pés e que, chegados ao hospital, alguém lhes receitou aspirina e os enviou de volta para casa, sem ao menos a recomendação de não tentarem voltar à varanda?).






Na foto à direita, podemos ver Durão Barroso em revolucionário afã, numa manifestação do MRPP, embora, na verdade, nunca tenha andado pelo D. Manuel-Rodrigues-Amilcar Cabral. Mas havia lá alguns maoistas a que eu achava uma certa piada. Tinham todos a cabeça rapada (no tempo em que se usava melenas longas) e compareciam sempre às RGAs com o intuito de lançar bocas provocatórias. Deviam ser uma meia-dúzia... Espanta-me como é que os "dirigentes sindicais estudantis", de visivelmente irritados que ficavam com as suas intervenções, nunca ali exerceram justiça popular, para possível gáudio da ganapada que sempre aproveitava para partir umas cadeiras. Entretanto, o episódio provavelmente mais memorável destas reuniões foi uma vez em que se fez uma manif no exterior do liceu, exigindo a presença do Governo (era um dos provisórios, sinceramente não me lembro qual), ao que de imediato se obteve resposta com a presença de um homenzinho de bigodinho, secretário de Estado, acho, no meio daquele palco enorme e enfurecido, em tentativa de diálogo com os estudantes... "Vai-te embora, ó paneleiro!" e "Chupa na pissa fascista!", foram alguns dos mimos com que se viu presenteado. Retrospectivamente, recordando-me do seu ar atrapalhado de culpa burguesa, faz-me pena pela covardia e incompetência...








Se os provocadores MRPP do liceu nunca chegaram a ser lançados à fogueira, a verdade é que, durante esse tempo, Otelo Saraiva de Carvalho (o mesmo que certo dia disse que se quisesse "seria o Fidel Castro da Europa" e que todos os fascistas deviam ir "para o Campo Pequeno"), à frente do seu mini-exército COPCON, não deixava os créditos por mãos alheias. Talvez alguns ainda se recordem da quantidade de miúdos simpatizantes do partido que foram, às carradas, ver o sol aos quadradinhos por uns tempos... Prisões por delito de opinião política? Não!... O seu líder de então, Arnaldo Matos,"grande dirigente e educador do proletariado português", também passou uns tempos atrás das grades, como se pode verificar pelo cartaz à direita.
Certo dia, o liceu estava tomado, também ele pelo COPCON. Era um monte de putos mais velhos, todos fardados e armados, que, no meio do estabelecimento de vidros partidos e paredes escrevinhadas e sem o mínimo espaço para a utilização de mais um niquinho de tinta ou giz (ainda me lembro da vergonha que passei quando o meu pai me descobriu um monte de paus de giz no bolso do casaco e me obrigou a devolvê-los à escola, assim tolhendo a minha actividade revolucionária), se comportavam como pitbulls em pose de guarda e nos davam encontrões, rosnando: "Afasta-te daqui, ó puto!"


Mas tudo muda e se altera. Certo dia, o pessoal fartou-se dos "núcleos sindicais", de quem uma das mais famosas personalidades era um tal "camarada Ivo", e o liceu viu-se cercado por um monte de ganapos em fúria, não só locais mas também do Garcia, do Nobre e de outros liceus do Porto. Entretanto, os "núcleos" tinham-se encerrado no laboratório de Geologia, bem lá em cima e a dar para a rua, e começaram a bombardear a malta com quartzos, micas, granitos, calcários, xistos, basaltos e o que mais por lá encontrassem. Às páginas tantas, alguém conseguiu rebentar com os portões. Invasão! Também entrei. Mas só por um bocadinho... Pelos corredores apertados, na maior desorientação, voavam cadeiras, pedregulhos e o que mais pudesse ser lançado longe. Saí. Politicamente esclarecido sim, como todos naquele tempo, mas não suicida! (a continuar)


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