It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Chuva de Espírito Santo


Um palanque com um símbolo que começa a descolar-se num dos cantos e um imenso néon por trás. Uma multidão que aguarda, imersa em burburinho. No meio da multidão, passam-se comprimidos invisíveis que todos engolem de um trago, auxiliados por copos de whisky invisíveis. Rapidamente aclamado pela multidão, um político ascende ao palanque, sacode uma pena de pavão da gravata, pigarreia e acena aos seus apoiantes, indicando que se prepara para falar. Estes, com os olhos revirados em direcção ao topo do céu, não o vêem de imediato.
-Portuguesas! - principia o político - Portugueses!
Uma chuva de palmas abate-se no salão e todos se atropelam em busca de toalhas invisíveis com que fingem secar-se. O político sinaliza-lhes para que sosseguem...
- O dia de hoje é um dia histórico!
Palmas.
- A partir de hoje, nada voltará ser como dantes!
Palmas. Palavras de ordem. O político sorri e manda-os sossegar.
- A minha vitória é de todos!
Palmas. Vivas.
- E a nossa derrota é uma vitória moral!
Mais palmas por longos instantes. Gritos. Palavras de ordem. Cantos desencontrados. O político volta-se para um enorme grupo de jornalistas que se acotovelam a um canto da sala. Um deles jaz numa poça de sangue, apunhalado por alguém, mas é pisoteado pelos restantes, quando procuram chegar-se mais perto do palanque.
- Que se passa? - pergunta o político.
Palmas. O político sorri e volta a dirigir-se aos jornalistas:
- As senhoras e os senhores da imprensa têm perguntas?
- Doutor político!... - lança um jovem praticamente imberbe, quase o atingindo no queixo com um microfone maior do que a sua cabeça.
- Sim? - interroga o político, desviando-se a tempo.
- Nada. Os nossos estúdios passaram a outro político.
- Ó, pá! Não é nada assim! Já passaram para outro e para outro e para outro! - grita-lhe outro jornalista, elevando os braços bruscamente.
- É uma roleta! Adrenalina! - exclama um terceiro esbaforidamente.
- Radical! - solta outro ainda, saltando de excitação.
- Aleluia! - gritam em coro.
- Muito bem... - concorda o político, escondendo um esgar de insatisfação.
Palmas. Palavras de ordem. Subitamente, irrompe um segundo político pela sala dentro, concentrando as câmaras desligadas sobre si. Sorri e afirma:
- Eu sei de tudo mas não sei de nada.
Palmas.
- De qualquer modo, o mundo não acaba hoje... - escuta-se uma voz no meio da multidão.
- Mas algum dia há-de acabar... - pondera outro.
- Não está provado... - acrescenta alguém.
- Mas também ninguém provou o contrário. - finaliza alguém mais.
Faz-se um minuto de silêncio meditativo. Dom Sebastião entra a trotar pela sala dentro e uma chuva de Espírito Santo abate-se sobre os presentes.
- Parece que o tempo vai piorar... - murmura o político no seu palanque.
- Felizmente que a chuva é invisível... - acrescenta o segundo político.
Palmas, risos, aleluias, cânticos e cai o pano brutalmente sobre as cabeças de todos.


Imagem de www.leestoneking.com.