It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

terça-feira, janeiro 17, 2006

A Metamorfrase

O despertador explodiu e ele sentiu uma dor dilacerante nos ouvidos. Levou reflexamente a mão à orelha, retirou-a e viu, com espanto, que a raiavam finos riachos de sangue de onde tombou uma pequena gota na brancura do edredão. Saltou da cama num repente e veio-lhe a sensação de uma intensa queimadura. Olhou assustado para a cama onde ainda há pouco dormia um sono profundo e viu que se tinha transformado numa torradeira. Com o coração em crescendo galgando-lhe às têmporas, olhou-se no espelho e notou um corte fundo que lhe descia da orelha direita ao lábio inferior.
Vestiu apressadamente a roupa do dia anterior. Não havia já tempo para um duche, sequer para se barbear. Esperou não receber algum comentário depreciativo no escritório... Regressou ao espelho e retirou um fiapo de algodão para limpar a marca de sangue já parcialmente coagulado e notou que um corpo estranho, mole e longilíneo, lhe deslizava do ouvido interno em direcção à bochecha ainda amarrotada da almofada. Que diabo!, pensou. A custo, retirou a pequena sanguessuga que se lhe colava firmemente ao rosto. Olhou-se de novo... O cabelo surgiu-lhe exageradamente encaracolado, um novelo desgrenhado descaindo-lhe sobre o pescoço dorido. Penteou, com um custo inabitual, o cabelo inabitualmente enriçado. Uma sensação de estranheza, um remoer das entranhas começou a tomar conta de si e correu em direcção à enciclopédia médica que guardava numa estante, mas a verdade é que já não tinha tempo para leituras...
Saiu em passo apressado. Será que fechei a porta?, interrogou-se já no fundo das escadas. Saltou os degraus de volta, dois a dois, e deixou escapar um suspiro de alívio ao deparar com a porta bem fechada, fechadas as três fechaduras de segurança que a percorriam. Regressou rapidamente ao andar térreo, com a sensação de urgência crescente que a hora lhe imprimia. Nem se atreveu a olhar para o relógio. Uma estranha comichão tomava-lhe conta do corpo mas não tinha tempo para se coçar. Correu para a entrada do metro, embrenhou-se pelas húmidas passagens subterrâneas e estacou, apenas por instantes, para examinar um cão, pelado e amarelo, que dormia embrulhado numa manta castanha. Onde estaria o dono? Em todo o caso, tinha que se apressar! E a comichão crescia-lhe no corpo sem que entendesse a razão. Teria pulgas em casa? Teria comido algo fora do prazo? Tinha que se apressar...
Viajou, forçadamente rígido, ao longo dos túneis de betão que furavam as entranhas da cidade. Não fitou ninguém e ninguém o fitou, excepto um velho desdentado que, embrulhado num xaile axadrezado, lhe sorria descaradamente. Desviou o olhar. Mais um desgraçado de cabeça perdida...
De regresso ao exterior, à entrada da grande avenida, um grande Serra da Estrela desacompanhado rosnou-lhe, ameaçador. Paralisado por momentos, conseguiu esgueirar-se no preciso instante em que o animal começou a acelerar o passo na sua direcção. Estava cada vez mais atrasado! A estranha comichão adensava-se, embrulhada num imenso calor que lhe subia o corpo e desembocava no couro cabeludo, mas não tinha tempo para se coçar! Deu consigo a avançar em pequenos saltos ritmados e cada salto alongava o próximo, o que lhe inspirava uma bizarra satisfação. O horário! E o salto seguinte era maior. Procurou, no fundo dos finos bolsos do seu belo fato cinzento, o cartão de ponto. Sem ousar abrandar, tardou a encontrá-lo. Quando, enfim, o sentiu na palma da mão transpirada, percorreu-o com os dedos como se percorresse um amuleto. E o calor crescente nascia-lhe nas entranhas e fazia crescer a comichão já quase insuportável, mas não havia tempo. E saltava, saltava, saltava, inclusive, com uma certa elegância natural.
Franqueou as pesadas portas do imenso arranha-céus e correu para o elevador antes que as portas metálicas se cerrassem e assim cerrassem os rostos fechados no interior. Ajeitou cuidadosamente a gravata. Sufocava-o mas era essencial.
Saiu no último piso, picou o ponto, cinco minutos atrasado apenas e respirou fundo ao encontrar-se com a sua secretária, imersa num mar de vidro de onde se avistava o piso inteiro.
Sentou-se e ligou o computador, que vibrou imperceptivelmente ao som de uma música pré-gravada. Olhou, então, para cima e deu com o seu chefe de secção, que o encarava de braços cruzados e expressão de grande seriedade...
- Senhor Cordeiro... - disse secamente - Parece-me bem que temos que rever os seus horários.
Quis responder alguma coisa inteligente mas, por algum motivo, teve apenas o reflexo de coçar energicamente o couro cabeludo e, depois, os braços, as pernas, a barriga. Tudo lhe pareceu estranhamente fofo, lanoso, suave e encaracolado...
- Por esta, passa. - investiu o chefe, pausando pensativamente por momentos - Mas o atraso ser-lhe-á descontado no salário.
Escutaram-se as badaladas sonantes do relógio da catedral, na praça que ladeava o edifício. Desconcertado, procurou esboçar uma explicação razoável, mas apenas um soluço nervoso lhe nasceu da garganta. Insistiu, antes que o chefe se sumisse:
- Mééééééé!
Quase caiu da cadeira ao escutar-se!
- Algum problema, senhor Cordeiro? - interrogou o chefe.
De novo, procurou as palavras exactas e balbuciou:
- Mééééééé!
O chefe examinou exasperadamente o seu relógio de pulso e pareceu rosnar baixinho.
Sentiu um baque no coração, mas não foi capaz de articular palavra. O chefe voltou-lhe as costas e sumiu-se ao fundo da sala, no que lhe pareceu um momento interminável. "Mééééééé...", lamentou-se, pousando os olhos sobre o ecrã brilhante do computador. E abriu a pasta que estava dentro da pasta que estava dentro da pasta que estava dentro da pasta...


Imagem de http://griffinross.com/.

2 Comments:

At 6:33 da tarde, Blogger Daniel Carvalho Domingues said...

Deliciado!

 
At 5:26 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Muito obrigado. :)

 

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