It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

sábado, janeiro 14, 2006

É um mundo estranho...


Estava eu a tomar um pacífico café e a acender um cigarro quando alguém me disse:
- Posso?
Ergui os olhos do tampo da mesa onde tão ociosamente se alongavam, dei um par de voltas aos neurónios, semicerrei os olhos como se faz para paradoxalmente ver melhor e, por fim, respondi:
- Ah, és tu! Há que tempos! Senta-te...
O homem tremelicou imperceptível e atrapalhadamente e começou a desculpar-se:
- Mil perdões, não sei como mas confundi-o com um conhecido!...
Repus os neurónios no sítio, endireitei-me na cadeira e disse:
- Tem razão, eu é que peço desculpa. Também o confundi com um amigo!
Fitámo-nos por instantes. Finalmente, ele sorriu:
- Não faz mal. Acontece.
E voltei a pousar os olhos no tampo da mesa e na chávena de café que arrefecia rapidamente. Procurei um dos meus vários isqueiros no fundo de um dos meus vários bolsos e reparei, quando acendia o cigarro, que o homem ainda lá estava.
- Mas foi engraçado, não foi? - riu - Os dois... Confundirmo-nos assim...
- Pois foi. Há coisas...
- Pois há... Posso?
Estranha insistência. Mas acabei por lhe indicar uma cadeira. Porque não? Eis a conversa que se seguiu:

Eu (provocando o diálogo): Então? Que tal correu o dia?
Ele: Ainda bem que perguntas. Posso tratar-te por tu?
Eu: Já trataste. Porque é que ainda bem que pergunto?
Ele: Tem sido um dia estranho...
Eu: Ah?
Ele: Tem.
Eu: Estranho, como?
Ele: É complicado. E simples. Bom, nem complicado nem simples... De manhã, costumo sair da cama pelo lado esquerdo e, quando dei por mim, tinha saido pelo lado direito!
Eu: Muito bem...
Ele: Sei que, por si só, não parece ter importância. Mas a verdade é que quando abri a persiana, notei que estava um casal que mora por cima de mim no pátio. Normalmente, só lá está ele. Ou então, ela. Às vezes, não está ninguém.
Eu: Interessante...
Ele: Não é? Normalmente, nem dariam pela minha presença. Mas desta vez acenaram-me. E eu retribuí o aceno, claro. Pensei logo se não haveria algo de errado comigo e corri para o espelho.
Eu: E...?
Ele: Tinha o cabelo levantado! Para cima, em direcção ao céu! Eu, que até tenho o cabelo bastante liso, tinha-o todo levantado! Penteei-me logo.
Eu: Claro.
Ele: Depois, ao meter-me no chuveiro, não pude deixar de notar que a água estava com mais pressão do que habitualmente. Na altura, não liguei muito... Mas estás a ver o significado!
Eu: Acho que sim. Não é o mais normal...
Ele: Precisamente o que eu acho. Principalmente, tendo em conta tudo o que aconteceu depois... Em catadupa!
Eu: Em catadupa?
Ele: Em catadupa! Como o chuveiro!
Eu: Estou a ver...
Ele: Quando fui tomar o pequeno-almoço, apressadamente porque já estava atrasado, dei com a caixa dos cereais vazia. Vazia! E eu nunca me esqueço de comprar cereais!
Eu: De facto. E o que fizeste?
Ele: Já não tinha tempo para ir comprar cereais. Por isso, bebi um copo de leite e comi um pão com manteiga e queijo.
Eu: Bem visto.
Ele: Sim, mas, entendes? Leite, manteiga, queijo, tudo lacticínios!
Eu: Uma coincidência...
Ele: Pode ser... Mas eu desconfio sempre das coincidências.
Eu: Porquê?
Ele: Repara, mal saí de casa, com que é que dei de caras? Com uma vaca!
Eu: Uma vaca?
Ele: Maneira de falar... É uma vizinha que só me tem dado problemas. Uma autêntica vaca! Mas estás a ver como tudo se conjuga...
Eu: Um pouco bizarro, de facto.
Ele: Bom, enfiei-me no carro e acabei numa fila de trânsito interminável. A certa altura, consegui meter-me no lado esquerdo e vira-se para mim o condutor de trás e grita-me: "Ó boi!Tiraste a carta pelo correio?"
Eu: Isso é muito desagradável!
Ele: Pois é. Mas não liguei. O que me chamou mais a atenção foi a ligação entre a carta e o correio. Estás a ver? Como se alguém ou alguma coisa estivesse a querer comunicar comigo. Mas mais, muito mais do que isso, foi ele ter usado a palavra "boi". Estás a ver as peças do puzzle, todas a encaixarem-se? Os lacticínios, a vaca e agora o boi!
Eu: Bizarro, sim. E depois?
Ele: Cheguei ao meu local de trabalho e notei que o sol entrava em feixes pelas frinchas dos estores. Ora, normalmente os estores não estão corridos, entendes?
Eu: Ok.
Ele: Não estão, acredita. Depois, mal me sentei à secretária, tocou o telefone.
Eu: Atendeste?
Ele: Claro. Eram as testemunhas de Jeová... Queriam marcar uma entrevista comigo.
Eu: E não lhes perguntaste onde é que tinham arranjado o teu contacto?
Ele: Nem de tal me lembrei!Lembrei-me dos lacticínios e de tudo o resto, olhei para as frinchas de luz nas janelas, relacionei tudo com o telefonema e entendi, assim de repente, que Deus me pretendia comunicar algo! Senti, simultaneamente, um grande incómodo e uma imensa paz interior...
Eu: És uma pessoa religiosa?
Ele: Sou ateu.
Eu: Então?
Ele: Caramba, não se pode ignorar os sinais do Rei do Universo, Grande Pai de Tudo e de Todos, Imenso Relojoeiro Celestial, Aquele que tem Mil Nomes e cujo Nome não pode ser pronunciado, o Criador do Céu, da Terra e de Si Mesmo, tudo com maiúscula, enfim, estás a ver... Parece que quando se zanga pode ser terrível!
Eu: Mas disseste-me que eras ateu...
Ele: Mudei de ideias. Tive uma iluminação.
Eu: Ah, a janela!...
Ele: Sim. Mas não só. Nesse instante, chegou uma colega e ligou o interruptor. Não me digas que foi por acaso!
Eu: Certo... E depois?
Ele: Depois, abri o jornal e o que é que estava precisamente na página em que o abri?
Eu: Não sei. O quê?
Ele: Um artigo sobre as vacas loucas! Repara: vacas loucas, humanidade louca, o cordeiro de Deus...
Eu: Uma vaca não é um cordeiro.
Ele: Não sejas mesquinho. Pertencem todos à mesma família.
Eu: Estou a ver...
Ele: Mas não é tudo! Fui almoçar a a um restaurantezito onde vou sempre e onde costumo comer o prato do dia. O que é que achas que era o prato do dia?
Eu: O que era?
Ele: Borrego! Estás a ver a sequência de sinais? É inegável!
Eu: De facto, estranho... O borrego estava bom?
Ele: Comia-se, sabes como é nestes sítios com refeições económicas... Bom, mas o facto é que, logo de seguida, optei por não tomar café no restaurante. Foi como se algo ou alguém me guiasse os passos. Entro neste café, olho em redor, vejo que não há nenhuma mesa vaga e quem é que encontro?
Eu: A mim?
Ele: Bingo! Encontro-te a ti!
Eu: Acho que me convenceste. Nada acontece por acaso...
Ele: Incrível, não é? Acho que vou meter baixa e fazer uma peregrinação a Fátima!
Eu: É um mundo estranho...


Imagem de www.grassorganic.com.

2 Comments:

At 4:52 da manhã, Blogger Jorge Simões said...

Lol, ok? Obrigado por apreciares. :)

 
At 3:52 da tarde, Blogger Daniel Carvalho Domingues said...

Dei com este teu blog casualmente, nem sei bem como, mas deixei-me ficar pra ler.. Adorei o texto! Está mesmo fixe!

Parabens, ah!

Dani Domingues

 

Enviar um comentário

<< Home