It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Encontro com um pobre diabo


Jeremias dorme a sono solto no seu minúsculo quarto. Uma racha quebra-lhe perpendicularmente o guarda-fatos que comprou em segunda mão e manchas de humidade desenham formas escuras e fantasmáticas a partir da janela, cuja persiana se encontra entreaberta por medo do escuro, e escorrem pela parede abaixo, até perto da cama barata que chia de cada vez que se movimenta no sono. A mulher fugiu com um cirurgião plástico que conheceu numa operação de arrebitamento do nariz (cujas prestações ele ainda paga mensalmente ao banco) e enviou-lhe um email lacónico em que afirmou apenas: "Tornaste-te muito medíocre. Bj". O filho adolescente despreza-o por "ser um fraco e não saber de nada". As colegas de trabalho riem-se-lhe nas costas por gaguejar e padecer de acne tardia. Os amigos afastaram-se por o terem passado a considerar "chato e pouco alegre". E os cães de guarda atiram-se-lhe com um terrível afã devorador, de cada vez que, distraidamente, passa diante dos seus portões.
Dorme, então, pacificamente Jeremias, quando um estranho tremor toma conta do quartinho, fazendo-o erguer-se num salto, ainda a tempo de evitar a queda de um crucifixo de bronze em cheio no cocoruto. Estrebucha e abre os olhos tanto quanto consegue. Diante de si, depara com uma estranha personagem de sobrancelhas que apontam para cima, olhos azul-aquáticos, um meio-sorriso aberto (seja lá isso o que for) e uma pequena pera afilada. Veste uma longa gabardina negra até ao chão, como um urbano-depressivo perdido no tempo.

Jeremias - Quem és tu? Quem sou eu? Que fazes aqui? Estarei acordado? Estarei a sonhar? Porque é que estás rodeado de uma estranha aura luminosa arroxeada?
Desconhecido (num tom de voz cavo mas tranquilizador) - Sou um amigo... Já disse montes de vezes ao meu luminotécnico para variar, mas o gajo é um chato dum conservador sem emenda!

Jeremias senta-se ao lado direito da cama, mas regressa rapidamente aos cobertores.

Jeremias - Que frio, maldito inverno! Um amigo, hã? Então, deves achar-me chato e pouco alegre. Por acaso não terias um Prozac contigo?
Desconhecido (gargalhando e inclinando o pescoço demasiadamente para trás) - Prozac? Aiiii, acho que estou a precisar de fisoterapia, a idade não perdoa!... (tossícula) Prozac? Isso é para os fracos! Tu és forte!
Jeremias - Sou, é? Mas estou um bocado ensonado... Não seria possível termos esta conversa a uma hora decente... sei lá, depois das duas?
Desconhecido - Não estás a ouvir nada! Sou o teu único amigo neste e no outro (meio-sorriso aberto) mundos! E ofereço-te a oportunidade única de seres o que quiseres: forte, rico, poderoso, adorado... e ainda de ganhares os prémios artísticos que quiseres! You name it!
Jeremias (pensativo) - És da Maçonaria?
Desconhecido (fazendo uma complicada reviravolta com as fraldas da gabardina) - Não! O meu nome é... Lúcifer!
Jeremias - Lúcifer... Acho que já ouvi falar em ti... Fazes parte do jet-set de Cascais? Às vezes, enquanto espero pelo dentista, tenho oportunidade de ler muitas revistas sobre o jet-set de Cascais...
Lúcifer (elevando a voz) - Lúcifer, criatura! O mais belo e poderoso dos anjos, o justiceiro da alvorada e do entardecer, o inimigo de não interessa quem, o que tem a coragem de desafiar O Que Tem Mil Nomes E Cujo Nome Não Pode Ser Pronunciado!... Uf, canso-me de falar com tantas maiúsculas seguidas!
Jeremias - Bom, Dulcimer, tem calma... O que é que te leva a acordares-me assim, a meio da noite?
Lúcifer - Não é Dulcimer, cretino! Lúcifer!
Jeremias - Desculpa, Luther, tenho pouco jeito para nomes... Que é que desejas, afinal?
Lúcifer (coçando a pera nervosamente) - Lúcifer! Lú-ci-fer! Não pode ser assim tão difícil, hã?
Jeremias - Pronto, pronto, não te enerves. Por acaso, tinha um primo que também se enervava muito e acabou por sofrer um AVC. Se quiseres, trato-te por pá e assim evitamos idas ao médico, que sempre custam os olhos da cara. E então, dizias tu...?
Lúcifer - Já te disse, criatura! Força, riqueza, poder, adoração, todos os prémios que quiseres!
Jeremias - Estás a falar do Euromilhões?
Lúcifer - Vá, não me peças coisas impossíveis!
Jeremias - Hmm... Tens andado a ler muito Harry Potter, certo?
Lúcifer - Bem, queres ou não queres?
Jeremias - O quê?
Lúcifer - O que ainda agora te propus, que diabo!
Jeremias - Desculpa, estou com sono. E o que é que foi?
Lúcifer (suspirando) - Força, riqueza, poder, adoração e ainda os prémios que quiseres!
Jeremias - Só quero que me respondas a uma pergunta que me tem vindo a atormentar...
Lúcifer - Ok, pergunta!
Jeremias - De que cor é o urubu do quadro negro?
Lúcifer - Hã?
Jeremias - De que cor é o urubu do quadro negro?
Lúcifer - E eu é que sei? O meu reino está muito para lá do da rainha de copas!
Jeremias - Desculpa, mas essa é a resposta de que preciso. Se não sabes, não me convences. Boa noite e volto a dormir. Desculpa não te acompanhar à porta de saída...
Lúcifer (desconcertado) - Qual é que era a pergunta?
Jeremias - Estás com problemas de memória... Fazes uma alimentação variada e descansas o suficiente de acordo com o teu biorritmo? Ok. De que cor é o urubu do quadro negro?
Lúcifer - Vermelho...
Jeremias - Népias!
Lúcifer - Nã... Népias?
Jeremias - Népias.
Lúcifer - Pronto, estava a inventar!
Jeremias - Ok, não te preocupes. Tenho outra pergunta importante... Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?
Lúcifer - Ouve bem, ofereço-te força, riqueza, poder, adoração e os prémios que quiseres e preocupas-te com galinheiros?
Jeremias - Diz.
Lúcifer - Pronto... O ovo.
Jeremias - Não.
Lúcifer - A galinha.
Jeremias - Também não.
Lúcifer (exasperado) - Então, o quê?
Jeremias - Sei lá, não és tu quem tem que saber?
Lúcifer - E eu respondi!
Jeremias - Não respondeste coisa nenhuma. Disseste e contradisseste. Se não tens a certeza, é porque não sabes. Como é que achas que vou poder confiar em ti?
Lúcifer - São coisas muito subjectivas e estou a tentar simplificá-las porque te quero poupar, é só. Queres mesmo ficar a debater filosofia a noite inteira?
Jeremias - Ao menos estudaste filosofia na Faculdade de Letras?
Lúcifer (rosnando baixinho) - Começo a ficar com vontade de te lançar um dos meus raios!...
Jeremias - Perdão?
Lúcifer - Nada, nada...
Jeremias - Detesto quando alguém fala e depois diz que não é nada!
Lúcifer - Estava só a aclarar a garganta. Tenho andado um pouco constipado...
Jeremias - Posso-te arranjar uma aspirina, mas não tenho nada específico para a constipação...
Lúcifer (mudando de assunto) - Bom, o que é desejas mais do que tudo, no fim de contas? Todos os homens desejam algo! Pede e eu concederei!
Jeremias - Porque é que dizes os homens e deixas as mulheres de lado? Não te parece um pouco sexista?
Lúcifer - Os homens e as mulheres, pronto!
Jeremias - Como é que sabes que sou homem?
Lúcifer (surpreendido) - És gay?
Jeremias - Não e também não te interessaria se fosse. É uma questão de princípios!
Lúcifer (suspiro profundo) - Vá, vá, vá... Pede e eu concederei!
Jeremias - Qual é a tua taxa de juro?
Lúcifer - Taxa de juro? Mas isso é diabólico! O meu antigo patrão não gostava nada dessas noções...
Jeremias - Deve estar na falência...
Lúcifer - Ligeiramente (meio-sorriso aberto). Mas não é isso que nos interessa agora. Eu não cobro juros.
Jeremias - Como é que podes não cobrar juros? Vais viver de quê?
Lúcifer - Sou uma espécie de instituição de caridade.
Jeremias - Qual é o teu número de contribuinte?
Lúcifer - Número de contribuinte?
Jeremias - Sim, não me digas que és daqueles que fogem ao fisco e nos levam a todos à bancarrota!
Lúcifer - Que é que te interessa o meu número de contribuinte?
Jeremias - Não vou fazer negócios por baixo da mesa, não achas? Hoje em dia, o fisco não anda a dormir. Passas-me uma factura que eu possa descontar no IRS?
Lúcifer - IRS?
Jeremias - Sim, o IRS, o IVA, o IRC, sabes, aquele dinheiro que ganhamos mas não ganhamos e que paga as contas dos gestores do Estado, as benesses e as reformas dos políticos e as empresas que vivem de subsídios.
Lúcifer - Isso é diabólico!
Jeremias - Estás sempre com o diabo na boca!
Lúcifer - Sim... (meio-riso aberto)
Jeremias - E não te ofendas, mas esse teu meio-riso aberto é um bocadinho irritante...
Lúcifer (surpreendido) - Sim? Costumava ser muito apreciado! Bom, vou tentar rir-me menos...
Jeremias - Isso. Muito riso, pouco siso, já dizia a minha avó.
Lúcifer - Pois. Então, qual é o teu desejo? Força? Riqueza? Poder? Adoração? Prémios?
Jeremias - Nada disso.
Lúcifer - Então? Vá lá, diz!
Jeremias - Quero chuva na eira e sol no nabal.
Lúcifer (aproximando os ouvidos) - O quê?
Jeremias - Chuva na eira e sol no nabal. Falas português?
Lúcifer - Até falo latim ao contrário, se quiseres! Mas isso é um bocado surreal... Só Aquele Que, enfim, sabes quem, é que pode decidir dessas coisas... Lamento.
Jeremias - Desculpa, mas isso soa-me a incompetência. Acho que devias fazer uma reciclagem...
Lúcifer (rangendo os dentes) - Pede-me coisas realistas, com mil diabos! Força! Dinheiro! Poder! Adoração! Prémios! Coisa realistas, se fazes o favor!
Jeremias - Pronto. Quero lógica no mundo.
Lúcifer (erguendo uma sobrancelha) - Lógica onde?
Jeremias - No mundo! Falas português ou não? Lógica no mundo!
Lúcifer - Neste mundo?
Jeremias - E onde é que havia de ser? Em Caronte?
Lúcifer - Meu Deuuuuuuuuuuuuuuuus!......... Hã? Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!

Esvai-se numa nuvem etérea, arroxeada e com cheiro a enxofre.

Jeremias (olhando em redor) - Desapareceu!... Bom, vou voltar a dormir. Estes vendedores são uns pobres diabos...


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