It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

sábado, janeiro 07, 2006

Histórias de lobos e ovelhas


Um prado verdejante rodeado de pequenos montes. Vê-se o azul do oceano na distância. Aqui e ali, pululam como cogumelos pequenas aglomerações bizarras onde conglomerados de tábuas se misturam com montes de azulejos de todas as cores e paralelepípedos altos de vários quilómetros. Fazemos zoom sobre duas ovelhas ociosamente encostadas a um automóvel brilhante de óptimo aspecto. Enquanto uma faz na meia, a outra faz que faz…

Primeira ovelha – É para o que estamos…
Segunda ovelha – Portantos...
Primeira ovelha – Vistes o último episódio da novela?
Segunda ovelha – Qual delas? A que se passa no quartel, a dos coqueiros ou a do sexo problemático adolescente?
Primeira ovelha – Prontos! Lá te estás tu a armar em sabichona! Não achas isso um bocado arrogante?
Segunda ovelha – Não sei. Já não se pode confiar em ninguém. Muito menos em ovelhas. E o futebol também já esteve melhor...
Primeira ovelha – A culpa é toda dos lobos.
Segunda ovelha – Por falar nisso, vais votar no Brutamontes ou no chefe da alcateia?
Primeira ovelha – O voto é secreto… (pausa) Vou votar no que se ri muito. Depois é que vamos poder comprar montes de tesouras de poda.

Passa uma terceira ovelha, que quase não se vê de tão rápido o seu trote. Vem carregada de papéis e deixa cair alguns pelo caminho. De súbito, faz meia-volta e dirige-se às ovelhas ociosas com uma expressão carregada.

Terceira ovelha – Então? Não se faz nada? Não é assim que vamos para a frente!
Primeira ovelha, ofendida – Não se faz nada? Onde é que íamos parar se toda a gente parasse de fazer na meia?
Segunda ovelha, agastada – Por acaso, sabes quanto é que gasto só em aspirinas?
Terceira ovelha, forçando um ar cansadíssimo – Bom, bom… Quem me dera ser eu a avaliar-vos! Tenho que ir, tenho montes de papéis para preencher. Tenho que ir à luta! O que precisamos é de novas mentalidades e de um lobo a cada esquina… Por falar nisso, façam qualquer coisa que os lobos vêm aí!

Desaparece numa nuvem de poeira, deixando a descoberto pedaços de terra queimada e largando mais uns quantos papéis pelo caminho.

Primeira ovelha – Ouvistes? Vêm aí os lobos… Toca a fazer que fazemos, senão estamos feitas!
Segunda ovelha, com um esgar de nojo – Vistes a arrogância daquela gaja? Há ovelhas que ficam malucas com o poder!
Primeira ovelha – Hipócrita! Cá se fazem, cá se pagam!
Segunda ovelha – Já tomastes o mata-bicho?
Primeira ovelha – Não e não me ofereças cigarros que não tenho que ser obrigada a respirar o teu fumo!
Segunda ovelha, recostando-se contra o capot – Não se pode confiar em ninguém e muito menos em ovelhas… (subitamente atenta) Atenção, que vem aí o senhor lobo!

Chega o lobo, ainda meio tonto depois de uma patuscada com outros lobos…

Lobo – Então? Não se faz nada? É para isso que vos pago?
Primeira ovelha – Não, senhor lobo… (começa a fazer que faz)
Segunda ovelha, fingindo-se concentrada em alguma tarefa importante – A verdade é que há seis meses que não nos paga…
Lobo, pigarreando – Bom, já vos disse, a crise está instalada, a situação está difícil, para a semana prometo que vos pago, tudo depende de como as coisas correrem no casino… (voltando-se, com um ar severo, para as ovelhas) Vá, temos que solucionar a crise. Sentem-se, vamos fazer uma reunião.

Todos se sentam, simultaneamente irritados por terem de se reunir e aliviados por pararem de fazer que fazem.

Lobo – Muito bem. Dêem-me a vossa lã!
Primeira ovelha – A lã? Mas é que eu tenho muito frio!
Segunda ovelha – E eu, sem lã fico tosquiada!
Lobo – Vá, vá! É dos carecas que elas gostam mais! Temos que solucionar a crise ou não?
Ovelhas em simultâneo, dando a lã ao lobo – De facto…
Lobo – Bom trabalho! Podia ser melhor, mas bom, ainda assim. Só que a crise ainda subsiste. (pausa e finge raciocinar) Dêem-me as vossas patas!
Primeira ovelha – As patas? Mas sem patas demoro mais a chegar ao prado!
Segunda ovelha – E eu, sem patas não consigo fazer na meia!
Lobo – Vá, vá! Todos temos que fazer sacrifícios! Eu próprio… Temos que solucionar a crise ou não?
Ovelhas em simultâneo, estendendo as patas ao lobo – De facto…
Lobo, coçando o queixo – Muito bem. Mas a crise ainda subsiste. (finge pensar mais um pouco) Dêem-me os vossos olhos!
Primeira ovelha – Os olhos? Mas sem olhos não consigo ver televisão!
Segunda ovelha – E eu, sem olhos como é que posso ver o suficiente para fazer na meia?
Lobo – Um pouco de seriedade e eficiência, se faz favor! Façam o favor de me dar também as vossas línguas e os vossos ouvidos!
Ovelhas em simultâneo, chocadíssimas – E promete que nos paga para a semana?
Lobo, com um ar ultrajado – Já alguma vez vos faltei com a minha palavra de lobo? Na pradaria que fica além do oceano, as pessoas só têm uma semana de férias! O que é preciso é uma nova atitude! E, além do mais, hoje em dia temos que ser polivalentes! Vistam a camisola! Acredito que o nosso prado pode vencer!
Ovelhas, entre si – Parece ter razão…

Entregam as línguas e os ouvidos ao lobo.

Lobo – Bom, bom… E agora, toca a trabalhar, que é para o bem de todos! (fitando, com ar de espanto, as ovelhas inertes e esparramadas sobre o chão) Então? Não trabalham? Não fazem nada? Olhem para mim, não me fiz em dois dias e não exijo a ninguém o que não exigiria a mim mesmo! Não sou lobo para ir à casa de banho durante o horário de trabalho… Por exemplo…

As ovelhas mantêm-se absolutamente inertes, coladas ao relvado, junto ao automóvel.

Lobo, após um breve instante pensativo – Parece que não aguentaram o ritmo. Não, não é assim que vamos para a frente! Acho que só me resta pegar nas carcaças e levá-las para a Dona Loba. Pelo menos, sempre servirão para o jantar…

Uma quarta ovelha passa a uma curta distância. O lobo interpela-a.

Lobo – Ei, tu! Queres ganhar dois euros?
Quarta ovelha, aproximando-se – Que é que tenho que fazer, senhor doutor Lobo?
Lobo – Estou muito cansado de tanto trabalhar… Só tens que me trazer estas carcaças até à minha toca. Parece-te bem?
Quarta ovelha, sorrindo – Muito bem, senhor doutor Lobo. (para nós, que lemos este blog) Hipócrita arrogante, explorador!
Lobo – Que disseste?
Quarta ovelha, com uma vénia – Disse que sim senhor.
Lobo – Pois olha que tens razão. És uma ovelha inteligente. Tens o 9º ano? Se quiseres, podes vir trabalhar para mim, pago todas as semanas. Claro que não terás tempo para estudares à noite... Sabes, o problema deste prado é que todos querem um emprego mas ninguém quer um trabalho…

Afastam-se em direcção à toca, a ovelha carregando vagarosamente as carcaças (porque espera ser paga à hora) e o lobo dissertando sobre o grandioso futuro que ainda há-de chegar ao prado.



Imagem de www.theage.com.au.