La cigale et la fourmi
Era uma vez, num pinhal parcialmente ardido, uma cigarra, uma formiga e os restantes animais que pouco interessam, visto não terem representatividade considerável na fábula...
Certo dia, por finais do mês de Junho, estava a cigarra descansada, a perna cruzada, confabulando um poema ou a letra de uma canção, refasteladamente encostada a um tronco confortável, quando a formiga passou, tão, mas tão rapidamente, que quase nem se viu. "Mais uma a correr de um lado para o outro, a fazer que faz...", sorriu a cigarra de si para si. E continuou a confabular...
Só que a formiga, apercebendo-se daquela preguiçosa, aquela imensa calaceira que possivelmente tinha que sustentar com os seus impostos, voltou como um míssil teleguiado para trás e, franzindo o sobrolho, batendo com a patita direita ritmadamente no chão e cruzando os braços, começou a falar, com um tom de voz tão grave quanto a sua condição de formiga lhe permitia:
- Desculpe que me intrometa, mas que diabo faz aí, toda refastelada a olhar para o horizonte? Meteu algum atestado falso? Acha que a riqueza cai do céu?
A cigarra, que não se tinha esquecido de tomar o seu calmantezito matinal, olhou-a serenamente, embora com alguma surpresa, e respondeu-lhe num tom de voz tão calmo como a tarde estival:
- O que faço? Ora, sou uma artista e encontro-me em busca de motivos de inspiração. A tarde está linda, tenho a sorte de tocar um instrumento e gosto de trabalhar a palavra. Procuro a minha musa.
- Bom, mas eu até trabuco. - replicou a cigarra - Componho canções que talvez goste de ouvir e escrevo versos que a levam a viajar. A música e a escrita também não caem do céu...
- Senhor! - exclamou bem alto a formiga - Eu só ouço música de elevador e a ocasional música de dança nos momentos próprios, para não falar de Mozart, Vivaldi e mais alguns compositores sérios. Quanto a literatura, enfim, francamente só leio livros técnicos. Livros que me ensinem alguma coisa, entende? Não perco tempo com coisas inúteis.
A cigarra bem poderia ter ensinado à formiga que era regra básica de boa educação meter-se na própria vida. Mas, como não se tinha esquecido do seu calmantezito, limitou-se a responder:
- Como quiser... Embora ache que fica a perder...
- Suponho que receba subsídios do Estado... - rosnou a formiga ironicamente.
- Não... - replicou a cigarra tristemente - Infelizmente, nunca estive na política e não faço parte das associações que gerem os concursos artísticos do nosso pinhal...
- Ainda por cima é burra! Que inútil! - disse a formiga, voltando-se na direcção do público, de que nem ela nem a cigarra se apercebiam.
- Perdão? - disse a cigarra.
- Não interessa. Só lhe digo que não tarda está aí o Inverno e se não tiver arrecadado bens materiais antes dele chegar, está feita.
- Ora, tenho o suficiente para viver e faço aquilo de que gosto. Além do mais, ainda falta um ror de meses até ao Inverno. A senhora formiga é um pouquito exagerada, não?
- Exagerada, exagerada! - exclamou a formiga com impaciência indisfarçada - Bom, tenho que ir, que ainda tenho uma dúzia de reuniões agendadas para hoje! Depois não diga que não avisei!
- Então, continuação de uma boa tarde! - desejou-lhe a cigarra, mas a formiga já ia no sexagésimo-sexto pinheiro mais à frente e já nem a ouviu.
O resto da historieta, conhecem-na vocês bem. A formiga passou o Verão e o Outono a amealhar, a reunir-se compulsivamente e a investir. A cigarra, por seu turno, criou uma vasta obra artística que ia melhorando com a prática de cada dia que passava. E os dias passaram, até que chegou o Inverno... Como chegou a ser do conhecimento até mesmo de um certo La Fontaine, o Inverno foi mais rigoroso do que optimistas como a cigarra poderiam ter esperado e esta, algo envergonhadamente, lá teve que ir tocar à campainha da confortável moradia da cigarra...
- Quem é, com este tempo e a esta hora? - perguntou a formiga, num tom de voz algo exasperado.
- Sou a cigarrinha... Não teria um momento para me dispensar? - disse a cigarra humildemente.
- Ora, ora, quem me vem bater à porta! - exclamou a formiga, no tom de voz triunfante de quem vence uma batalha e se sabe detentora da verdade total - Então, parece que o tempo não está lá muito de feição?
- Peço desculpa, mas as coisas não correram como eu esperava. Perguntei-me se, por acaso, não teria um emprego para mim...
- Emprego? - exaltou-se a formiga - Lá está o problema do nosso pinhal! Todos querem empregos mas ninguém quer trabalhos! O que é que sabe fazer? Já lhe disse que só leio livros técnicos.
- Sou muito polivalente, embora possa não parecer... - replicou a cigarra - E não me importo de trabalhar a recibos verdes...
A formiga ponderou dois, três segundos e, triunfantemente, proferiu:
- Não. Vai-me desculpar, mas não dou trabalho a calaceiros! Além do mais, sabe perfeitamente que está aí uma crise... Na verdade, estou a pensar em despedir metade do meu pessoal. Com licença, que está frio!
E fechou-lhe o portão no narizito.
- Ai, meu Deus... - lamentou-se a pobre cigarra - E o que será de mim agora?
Uma semana decorrida, a formiga, de pata cruzada frente a uma lareira acabada de acender, abriu o seu exemplar matinal do Tempos Financeiros e logo deparou com a notícia de que uma determinada cigarra, em tempos algo conhecida por alguns trabalhos que fizera, tinha sido encontrada morta junto ao ribeiro gelado que atravessava a floresta. Suspeita-se de abuso de cogumelos selvagens, rezava o artigo.
- Eu sabia! - exclamou a formiga - Eu bem que a avisei! Pronto, cada um tem o destino que traça.
E lá prosseguiu com a sua vida, sem mais se lembrar da cigarra que um dia lhe viera bater à porta em necessidade.
Só que a crise, quando chega, pode muito bem chegar para todos. Em resultado de investimentos fracassados devido à crise no desrto onde moram aquelas formigas grandes e acobreadas, que têm por hábito morder sem piedade e sem pré-avisos, a uma vistoria conjunta dos serviços do IRS, IRC e IVA e à concorrência agressiva das formiguinhas orientais, a nossa formiga viu-se forçada a apresentar falência. Não tardou, o Estado leiloou-lhe compulsivamente a moradia, a colecção de carrinhos de linhas e os restantes bens que não logrou esconder.
Em desespero, a formiga começou a beber abundantes gotas de orvalho logo pela manhã e suicidou-se, enfiando-se voluntariamente debaixo da bota de um lavrador.
Com a economia de pantanas e o Inverno que parecia não ter mais fim, os restantes animais do pinhal começaram a emigrar para paragens mais amenas.
Um dia, já as primeiras flores rompiam da terra húmida primaveril, chegou o mocho, que passara vários anos afastado do seu pinhal, enquanto trabalhava numa tese de doutoramento nas florestas de folha caduca da costa Leste dos Estados Unidos. Pousou num ramo e olhou, surpreendidamente, em volta...
- Olha? Ninguém... Mais um pinhal conquistado pela desertificação do interior...
Revirou os olhos com toda a força do seu intelecto, suspirou inteligentemente, levou a asa direita ao peito e declamou (melhor falando, disse - como actualmente se usa):
A moral desta história
Que nos confunde a memória
É que não saber colaborar
Pode muito mal terminar.
Cigarra e formiga partiram
Pois só a si mesmas ouviram;
Por muito que custe aturar,
Há que saber escutar.
Quem os outros não aceita
E em sua cama se deita,
Acaba morto e falido
Como um Governo ou um partido.
J'ai dit.
- Pronto. Não foi lá muito inspirado mas chegou. - concluiu.
E assim tendo falado, o mocho bateu asas e voou para Norte, em direcção aos jardins e às torres das catedrais de Paris, onde era ansiosamente aguardado para mais uma série de rimas inspiradas que se inseririam num ciclo de conferências que prometera aos seus amigos da Academia inaugurar.
Imagem de http://gtiss.free.fr.
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