It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

sexta-feira, junho 09, 2006

How I shall win the Pulitzer


Aproveitando os últimos estertores da era em que, como professor, me permitem exercer, lateralmente, algum tipo de actividade a tempo parcial, tive a fortuna imensa de poder ingressar na redacção de um jornal, cujo nome omitirei por mero decoro.
Não percebendo nada de jornalismo e com não mais do que a experiência de escrever ocasionalmente para blogs absolutamente nada importantes, já contava que o chefe de redacção, indíviduo competente, inteligente e pejado de mérito e medalhas, me impusesse um "caso difícil"...
"Tenho que te colocar à prova, ó maçarico!", exclamou alegremente. "Ou tens faro jornalístico, espírito de investigação e sacrifício e um vasto conhecimento do que vai pelo mundo, ou não te poderei considerar talhado para a missão..."
Humildemente, concordei. Saí, então, para a rua, imbuído da convicção plena da necessidade de provar o meu valor não só ao quinto poder, parâmetro imparável da liberdade de expressão, como a mim mesmo.
"Vamos todos rezar pelo teu bom sucesso, colega! Espero que, muito em breve, te venhas a revelar digno de ocupar uma poltrona numa sala do último andar!", lançou-me, da janela, o chefe de redacção, com um sorriso largo e genuíno.
Sorri de volta. A minha reportagem, a minha missão, quiçá candidata ao Pulitzer, consistia em entrevistar aprofundadamente o "português real" (não confundir com os afortunados detentores de sangue azul).
Nesse dia, sentado à mesa de um café, em plena tempestade cerebral comigo mesmo, não fumei. Para não prejudicar o faro, antecipei-me assim às justíssimas imposições do Governo (com maiúscula, como se escreve na imprensa; aprendi no liceu) Sócrates (creio não ser o mesmo de que me falaram no liceu, que se matou com cianeto ou algo assim)... Subitamente, surpreendentemente, quem farejo eu, apenas duas mesas ao meu lado? O Português Real! De imediato, liguei o pequeno gravador que acabara de adquirir e cuja marca omitirei por mero decoro, inflei-me de coragem, apresentei-me e dei início à entrevista. Segue-se a sua transcrição, absolutamente fiel e integral, como deve ser, a qual guardo em meia dúzia de cassetes, pelo que quaisquer senhores de qualquer polícia "de segurança" sempre poderão confirmar a minha total honestidade e o meu civismo, de acordo com as regras de bom funcionamento da democracia de tipo ocidental...

Jornal (cujo nome omito por decoro): Como é a sensação de se ser o "português real"?
Português Real: (risos) Tudo numa boa! Tudo numa boa?
J: Sim. O que pensa da forma como está a ser jogado o futuro do nosso país?
PR (não é presidente da República): (tosse) O Mantorras é baril. O Scolari é brasileiro. Se Portugal ganhar a Angola, vou a pé até à Alemanha.
J: Mas como vê o futuro de Portugal?
PR: (risos) Deixe-me só pôr os óculos... (tosse) Isto está mal. Mas está bem. (risos) O governo faz coisas que tem que fazer.
J: Que pensa da atitude do nosso primeiro-ministro quando, no parlamento, disse, passo a citar: "Esteja mas é caladinho e ouça!"?
PR: (tosse) O meu pai também me falava assim. Era o melhor pai do mundo. Também era um chato - olhe, essa é off the record, ok?
J: E o que pensa de a ministra da Educação se dirigir às câmaras de chiclete na boca?
PR: (risos) Uma santa senhora! Há que meter os profes na ordem! Não fazem nada, ganham balúrdios e são os responsáveis de...de...já não me lembro lá muito bem...
J: Exacto... Mudemos, então, de assunto... Sentiu mudanças na sua vida desde que o IVA passou a 21%, a gasolina passou a subir semanalmente e os portugueses passaram a odiar os restantes portugueses?
PR: (tosse) Sabe, eu não vou na conversa dos esquerdinos (sic)! O governo faz coisas que tem que fazer.
J: Certo. Vê, assim sendo, uma luz ao fundo do túnel para o nosso país?
PR: (risos) Tenho poupado o que posso na electricidade, mas guardo sempre umas velinhas para o caso de faltar a luz. Ou para rezar a Nossa Senhora - off the record. Não tenho é túneis em casa, pelo que me sinto satisfeito.
J: E a comunicação social? Sente-se plenamente informado acerca do país real?
PR: (tosse) Eu acho que é preciso comunicar. Tenho aprendido muito sobre Lisboa. E gosto do Morangos com Açúcar, acho que me comunicam mesmo muito!
J: Sente-se, então, de bem com a vida...
PR: (risos, tosse, risos e tosse) Se Portugal... Se Portugal.... Se Portugal..... (risos) (risos) (risos)

Nesse instante, o homem caiu de bruços sobre a mesa! Assustei-me. Vi que estava muito amarelo, tipo morangos com açúcar amarelo... Continuava, no entanto, a rir. Abanei-o e recebi um valente murro de volta, mas logo comprendi que se tratava de um acto reflexo. Tomei-lhe o pulso, senti-lhe o vazio e, por momentos, pairei no éter da dúvida metódica neo-niilista. O homem continuava a rir-se de forma ritmada. Com dificuldade, entreabri-lhe os maxilares e encontrei, colado com cuspo sob a língua seca, um pequeno gravador que repetia: (risos) (risos) (risos) e por aí fora... Inteligentemente, concluí que o homem já devia estar morto há bastante tempo. Mais inteligentemente ainda, com sagacidade mesmo, percebi que, quando vivo, o que ele mais gostava era de rir. Despedi-me educadamente, ainda que não creia ter sido ouvido, e tomei o caminho de regresso à redacção, sita numa determinada morada de uma determinada rua, dados que omitirei por mero decoro.
"Que sorte a tua!", exclamou, ao ver-me, o chefe de redacção, enquanto se me lançava de braços abertos. Farejei-lhe o uso de um dado desodorisante, cujo nome omitirei por mero decoro. "Não te podemos pagar, mas ainda te vais poder candidatar ao Pulitzer! Parabéns!"
Fiquei mais do que satisfeito. E ainda guardo o pequeno gravador do "português real" numa gaveta do meu quarto, embrulhado entre peúgas e cuecas. De cada vez que me sinto ir um pouco abaixo, escuto-o e não me posso impedir de sinceramente sorrir!


Imagem de http://news.bbc.co.uk.