Desafiando os deuses
Tollan ou Tula foi a lendária capital do povo tolteca, governado por um rei de nome Huemac. No tempo do Festival das Flores, o rei lançou a sua coroa ao chão e pediu a Acxitl, seu filho, que a usasse se assim o entendesse. Seguidamente, vagueou até à floresta pensando em canções e aí encontrou Tlaloc, o terrível deus da chuva.
"Porque deste a tua coroa a um bastardo?", lançou o deus com voz de trovão. "Há muito que a tua raça ofende os céus e agora será completamente dizimada, juntamente com a cidade que erigiu! O tempo da misericórdia terminou!"
Apavorado, Huemac regressou a Tollan e encontrou Acxitl entretido com uma bailarina de nome Urendequa. Uma vez escutada a narrativa do pai, este respondeu-lhe:
"Desde quando é que a cidade de Tollan pede misericórdia aos velhos tontos dos céus?"
Em vão Huemac procurou levar seu filho até junto de um sumo sacerdote para pedir clemência a Tlaloc.
"Vamos depressa para onde os octli perfumados brilham numa taça, meu pai!", proferiu destemidamente Acxitl, referindo-se ao mundo que aguardava os mortais após a passagem deste mundo.
Um estranho torpor abateu-se sobre a cidade. Quando Huemac se retirou, Urendequa interrogou Acxitl:
"Então tu não tremes perante a ira dos deuses?"
"Minha amiga...", redarguiu o novo rei. "Viveste quarenta anos como bailarina. Achas que há alguma coisa a temer quando se pensa na morte? Eu vejo o amor à vida como algo de ridículo, um isco deitado por deuses incompetentes para nos manter aqui. Digo-te que esses deuses construiram mal este mundo feio, mas para que a sua divindade seja acreditada devem fingir que é bom. Assim, eles nos amaldiçoaram com o amor à vida para que não os possamos afrontar ao fugir desta prisão a que nos condenaram. Eu jogarei a minha humanidade contra a divindade dos deuses. Eles amaldiçoam-me porque sou um homem e não possuo o seu sangue. Eu não procuro a vida, mas a culpa da minha fuga recai apenas sobre eles. Que fique dito: massacraram-no porque descobriu as suas intenções".
Dois vulcões começavam, então, a vomitar lava na distância e escutava-se o ribombar do trovão. A população entrou em pânico. Grandes pedras cairam dos céus, mas nenhuma atingiu Acxitl. Simultaneamente, um grande exército Chichimeca postou-se às portas da cidade, decidido a tudo conquistar e a não poupar vivalma. A tudo Acxitl reagia com sarcasmo...
"A minha disputa não é com os Chichimecas e sim com os deuses. Será que devemos fazer sempre aquilo que eles desejam? Será que devemos trabalhar constantemente para que eles possam colher? Dveremos estar constantemente a lutar para que eles possam ter sangue? Deveremos estar constantemente a orar para que a sua vaidade aumente? Façam-no, se quiserem, mas eu não serei mais seu escravo. Tollan tem sido a cidade da música, do amor, dum espírito secreto, de brincadeiras agradáveis e de lágrimas. E os deuses estão cansados de tudo isso. Desejam ser louvados, da mesma maneira que o sangue é o seu alimento".
O palácio, como a cidade, estremeceu. Agarrando num bastão incrustado de obsidianas, Acxitl encaminhou-se para a rua. Assim prosseguiu até à grande estátua de Tlaloc e clamou:
"De pé, irmãos! Hoje fui rei de Tollan. Éramos muito felizes e os deuses zangaram-se porque negligenciámos a sua adoração. Feliz fui eu também, até descobrir que um homem não pode viver livre do sofrimento inflingido pelos deuses. Não há vida ou arte que me mantenha sob tal escravidão. Assim, forço os deuses a abir a porta da morte!"
E, assim falando, atingiu a imagem de Tlaloc no pescoço com o seu bastão, a qual, desfazendo-se embora o bastão, oscilou, caiu e rolou para uma valeta. Acxitl gargalhou e logo se viu atingido por um imenso raio que varou os céus, deixando as suas cinzas espalhadas pela rua.
"Os deuses são de facto grandes!", sussurrou o chefe dos Chichimecas, que entretanto se aproximara com os seus exércitos, soltando um fundo suspiro. "Esta cidade estava cheia de pecado e o seu rei era louco. O seu destino caiu sobre a sua cabeça".
"No entanto...", disse o escudeiro a seu lado, "... não é todo o homem que pode forçar os deuses a matá-lo para que o seu sangue possa ser testemunho contra eles... Não é ele que coage os deuses, como se ele mesmo fosse um deus?"
Espero que encarem esta história de coragem como uma história sem tempo... Uma história com sentido, inclusive nos dias de hoje e na civilização actual.
Adaptação de Mitologia Latino-Americana (Estampa/Círculo de Leitores)
Imagem de http://chezphil.org.
2 Comments:
Finalmente puseste de lado a tua luta viscerina contra a Maria de Lurdes. Já tinha saudades de ver coisas diferentes. Tirando, claro, TINC. Mas compreendo que tens os teus leitores fiéis.
Um abraço
Eheheh... A luta continua! ;)
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