O aborto
Sudoeste da Eurásia, ano de 5007
Uma cortante tempestade de areia varre, de ponta a ponta, o deserto do sudoeste eurasiático perto das ruínas de Portocalía. Jamsin Youdok vasculha o terreno teimosamente, mau grado a aridez e a tempestade, na sua teimosa convicção de vir a encontrar um resto, um resquício, talvez um escrito, talvez um artefacto, do tempo do Antes. Atingido em pleno rosto pela força que não parece aplacar-se, quase perde as esperanças por momentos. Subitamente, alguém entra esbaforido na tenda onde se abriga... É Alplaek, seu discípulo e, nos tempos mais recentes, o seu mais íntimo colaborador. Está corado de emoção. Esbraceja. Ofega.
Jamsin faz-lhe sinal para que se acalme. Que se passa? Alplaek ainda não está em si. Dar-lhe-ia um copo de água se a água não rareasse no local. Pede-lhe uma vez mais que se acalme. Em resposta, obtém um olhar esbugalhado. Atabalhoadamente, Alplaek estende-lhe um maço de folhas amarelecidas que abana febrilmente. Por fim, solta um suspiro e pede: leia! É de um tal Dan Brown!
Uma cortante tempestade de areia varre, de ponta a ponta, o deserto do sudoeste eurasiático perto das ruínas de Portocalía. Jamsin Youdok vasculha o terreno teimosamente, mau grado a aridez e a tempestade, na sua teimosa convicção de vir a encontrar um resto, um resquício, talvez um escrito, talvez um artefacto, do tempo do Antes. Atingido em pleno rosto pela força que não parece aplacar-se, quase perde as esperanças por momentos. Subitamente, alguém entra esbaforido na tenda onde se abriga... É Alplaek, seu discípulo e, nos tempos mais recentes, o seu mais íntimo colaborador. Está corado de emoção. Esbraceja. Ofega.
Jamsin faz-lhe sinal para que se acalme. Que se passa? Alplaek ainda não está em si. Dar-lhe-ia um copo de água se a água não rareasse no local. Pede-lhe uma vez mais que se acalme. Em resposta, obtém um olhar esbugalhado. Atabalhoadamente, Alplaek estende-lhe um maço de folhas amarelecidas que abana febrilmente. Por fim, solta um suspiro e pede: leia! É de um tal Dan Brown!
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2008
Cena de um centro de saúde lisboeta, local onde imperam a limpeza, o silêncio, a eficiência e a beleza...
Mulher - Estou muito satisfeita! Cheguei cá hoje de manhã, falei com uma equipa de médicos muito simpáticos que prontamente me atenderam e que imediatamente compreenderam o meu problema.
Rapariga adolescente, acompanhada dos pais - Ah, sim... E qual era, se não for indiscrição?
Mulher - Ah, bom, é que se me meteu na cabeça fazer um aborto mas, depois do acompanhamento personalizado a que desde logo tive direito, afinal opto por ter a minha criança.
Mãe da rapariga - Faz muito bem, muito bem... Principalmente porque o Governo do nosso bem amado primeiro tudo tem feito para incentivar a maternidade e a qualidade de vida das famílias. Ouvi, inclusive, dizer que, além da moradia que oferecem a quem opte por não abortar e da mensalidade de 5000 euros livres de impostos, vão passar a oferecer um Jaguar ou um Porsche à escolha.
Mulher - Ai, isso, como o nosso primeiro não há! É uma jóia de moço! E tão honesto!
Mãe da rapariga - Tão honesto, tão poupadinho e tão trabalhador! Olhe que não me lembro de um Governo com tantas leis!
Mulher - E a vossa menina? Alguma constipação?
Pai da rapariga (afagando risonhamente e em círculos a barriga da filha) - Oh, oh, oh! Não, não, a minha menina está com um tecido vivo na barriga e viemos cá fazer um aborto!
Rapariga - Pois. Não me apeteceu usar contraceptivo, é careta!
Mulher - Tirou-me as palavras da boca... careta! E uma situação dramática!
Mãe da rapariga - Sabe que desde que acabaram essas coisas do vão de escada...
Pai da rapariga - Desde que o nosso sistema de saúde passou a ser um exemplo para o mundo inteiro...
Todos juntos - Abençoado seja o nosso primeiro!
Enfermeira, atrás do balcão de atendimento - Amén!
Alplaek fita nervosamente Jamsin, como que aguardando uma resposta que este, emudecido de espanto e alegria, tarda em dar.
- É pena ser só isso mas... então? - interroga, com um ligeiro tremor de mãos.
Jamsin Youdok fita-o profundamente, ergue-se lentamente e, levando o maço de folhas acima da cabeça, exclama:
- Meu amigo, hoje fazemos história! Isto não é ficção! O documento que guardo nas minhas mãos entontecidas prova-o indubitavelmente: outrora, aqui floresceu um mundo civilizado a um ponto que nos custa mesmo a compreender!
- Um mundo civilizado! - acompanha Alplaek.
- Civilizado e perfeito! Temos tudo a aprender com esse esplendor que deu pelo nome de Portocalía! Hoje fazemos história! Assim se faz a história!
Imagem de www.igadi.org.
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