It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

terça-feira, agosto 23, 2005

Um pouco mais de Campos



Fernando Pessoa nasceu a 13 de Junho de 1888 em Lisboa, cerca de dois anos antes de Álvaro de Campos, poeta nascido a 15 de Outubro de 1890 em Tavira, com quem fundou as revistas Orfeu e Portugal Futurista e a propósito do qual o igualmente co-fundador dessas revistas, Mário de Sá Carneiro, chegou a afirmar que a obra de Campos sobreviveria à sua própria e à de Pessoa.

Os percursos de Pessoa e de Campos foram diversos. Pessoa, que se auto-classificou como "tradutor" ou mais precisamente "correspondente estrangeiro em casas comerciais", conheceu a experiência de uma juventude na África do Sul, entre 1896 e 1905, na sequência da morte de seu pai e, no ano seguinte, do seu irmão Jorge, assim como da amizade entre sua mãe e o cônsul de Portugal em Durban. Poeta muito prolífico e interessado em astrologia e misticismo, Pessoa teve um único livro publicado em vida: Mensagem, ganhador do segundo prémio de um concurso cujo vencedor, como tão habitual é, mergulhou para sempre no esquecimento.

Já Álvaro de Campos estudou engenharia naval em Glasgow e percorreu demoradamente o Leste antes de se instalar em Lisboa. Curiosamente, as personagens de ambos confundiam-se ao ponto de o próprio Pessoa ter afirmado, partindo do princípio de que seria ele que de alguma forma talvez mediúnica, passava para o papel os versos de Campos, que o escrevia "quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê".

Pessoa faleceu em Lisboa, no hospital de São Luís, vítima de uma grave crise hepática resultante de muitos anos de contacto íntimo com a bebida. Estava-se a 30 de Novembro de 1935. Estranhamente, também Álvaro de Campos faleceu por essa altura, o que não deixa de tornar nos nossos espíritos curiosa a teoria das almas-gémeas...

De Pessoa, apesar do seu incontestável e incontestado génio, nada vos trago. Campos é mesmo, sempre foi, o meu favorito. Ofereço-vos, então, um díptico, que não começou por ser díptico, desse mesmo autor. Perdoem-me o exagero se porventura o for... Se realmente aqui transcrevesse todos os poemas de Campos que mais aprecio, a começar pelo genial e incontornável pequeno-grande poema da "Vénus de Milo", o vosso It takes two teria que passar a chamar-se Aliás, Álvaro de Campos...





Símbolos! Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. -
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...
Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria - pobre figura de miséria e desamparo! -
Que o namorado voltasse para a costureira.



PSIQUETIPIA (OU PSICOTIPIA)

Símbolos. Tudo símbolos...
Se calhar, tudo é símbolos...
Serás tu um símbolo também?

Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da mesa,
Pessoas independentes de ti...
Olho-as: também serão símbolos?
Então todo o mundo é símbolo e magia?
Se calhar é...
E porque não há-de ser?

Símbolos...
Estou cansado de pensar...
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham.
Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...

Meu Deus! E não sabes...
Eu pensava nos símbolos...
Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa...
"It was very strange, wasn't it?"
"Awfully strange. And how did it end?"
"Well, it didn't end. It never does, you know."
Sim, you know... Eu sei...
Sim, eu sei...
É o mal dos símbolos, you know...
Yes, I know.
Conversa perfeitamente natural... Mas os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?
Meu Deus! Os símbolos... Os símbolos...


E assim vos deixo com mais este momento de kultura, que é também um pouco o que me acontece "quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê". Abraços do Master.

Fotografias de www.arlindo-correia.com, www.christiansyou.com e www.studiopenumbra.com