It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

domingo, dezembro 04, 2005

O Verão Quente sem tretas de historiadores (3)


"Ya" (ou "ja", para maior correcção) e a versão perdida "oui". "Fixe". "Careta". "Curtir", "vamos fazer uma curtição". "Mene" ("man", na verdade). "Xis". "Baptizar" alguém. "Tás a topar?", seguido da simplificação "topas?", do pouco bem sucedido "domas?" e do actual "tás a ver?", já há muito tempo em uso... Pouquinho mais tarde, chegaram o "bué" ou o "totil", entre outros. Sorrio sempre quando noto que os putos de hoje acham sinceramente que inventaram esta terminologia toda...
Subitamente, toda a linguagem desabou nas cabeças dos portugueses, até então tradicionalistas qb. Tudo isto podia ser acompanhado por um "v" do médio e indicador, entre cabelos longos, calças à boca de sino, tudo muito, muito freak, muitas vezes, enfim, tão freak quanto os pais de cada um permitiam...
De repente, num país congelado durante 48 anos (pelo menos), viveu-se uma misturada de tempos de hippies, freaks, as versões primitivas do actual new age, os anos voaram em pouco tempo numa recuperação absurdamente rápida e absolutamente natural.
Muitos destes termos e dos novos costumes chegaram-os às levas com as remessas de "retornados" ou "refugiados" (como muitos preferiam ser denominados) que escaparam às guerras civis de Angola e Moçambique, onde deixaram todas as vidas e todas as vivências. Eram vivências muito diferentes das nossas... E vieram gerar uma miscelânea curiosa a que nunca mais escapámos...



O sempre corajoso Vilhena teve a força de satirizar o drama e os seus aproveitadores. Muita gente via nos "retornados" gente estranha com estranhos costumes que só vinha ocupar o lugar dos portugueses (!) e considerava-os, acima de tudo, fascistas que viviam à custa dos subsídios que iam sacar aos nossos bolsos de honestos trabalhadores. Tenho montes de histórias de "retornados" que poderia contar. E pergunto-me onde estarão actualmente... Muitos viram familiares serem mortos ou recrutados à força. Muitos passaram dias deitados no chão da casa de banho enquanto os obuses voavam em todas as direcções sobre as suas cabeças. Foram presos pelos exércitos todos. Vi muitos putos perfeitamente traumatizados e não estou a falar da mania actual de traumatismo para aqui, traumatismo para ali. Perderam tudo e chegaram de mãos a abanar porque os nossos políticos e militares decidiram que amavam os exércitos que depois se dedicaram a destruir África e os africanos enquanto abominavam os fascistas colonizadores (que eram eles mesmos).
A ganza chegou também com eles. Lembro-me de um tipo que trouxe um tapete cheio de "boi" lá dentro. A versão moçambicana era a "seruma" (ou "suruma"). O certo é que nunca mais nada seria igual. Ainda não havia Coca-Cola mas os freaks nacionais estavam preparados para passar manhãs inteiras no café a beber o que simultaneamente chamavam "água suja do imperialismo americano" às grades, mal a sua comercialização passasse a ser permitida no nosso país.



As plantações cresceram e multiplicaram-se como por ordem divina e todos os dias vinham nos jornais notícias de que tinha sido descoberta mais uma plantação de "liamba" fosse nos jardins da Arca de Água, fosse na Cordoaria ou até nos locais mais insuspeitos do Portugal mais fundo...
Recordo-me de chegar, certo ano, à aldeia onde sempre passara o mês de Setembro (no tempo em que o ensino era "eficaz", as aulas só começavam em Outubro) e estava tudo feito freak. Não só estava tudo feito freak como ainda os montes estavam, aqui e acolá, cobertos daquelas plantas neófitas que faziam rir uns tantos e geravam carrancas noutros tantos. O folclore estava morto. E os jovens do país profundo dançavam danças demoníacas ao ritmo de bandas com um som mais pesado. "Ya, nunca uso cuecas", disse-me um tipo de calças de ganga coçadas e de cabelo encaracolado quase pelos rins, enquanto curtíamos a manhã no banco do café, junto ao adro da igreja.
Claro que os arrumadores, os hepatíticos, os sidosos, os desdentados, ainda estavam para vir e esses não tiveram relação directa com os "retornados". Na altura, a cena era mesmo a ganza e o ser freak. Com franqueza, no meio da confusão toda, era uma idade de ouro e de inocência...



Foi também a idade de ouro de todos os falsários. Os livros do Lobsang Rampa (pretenso monge tibetano fugido aos chineses) vendiam-se como ar condicionado no Verão em países ricos. O Robert Charroux era mais conhecido do que o tremoço em Portugal ou o pistacho na Grécia. Nunca consegui ver o filme Eram os Deuses Astronautas?, porque os bilhetes se mantiveram esgotados semanas a fio. Montes de putos, eu incluído. participávamos em grupos de "estudo de ovnilogia e do oculto" e cheguei a receber muita correspondência do CEFC (Centro de Estudos Fraternidade Cósmica), uma seita ou coisa que o valesse dirigida pelo siciliano Eugenio Siragusa, o qual se afirmava em contacto permanente com os extraterrestres que nos visitavam e procuravam salvar o mundo. Aquele californiano de quem já nem me lembra o nome e que nos anos 50 ou por aí tinha fotografado tampas de caixotes de lixo em pleno vôo para ilustrar as suas patranhas de encontros com uma civilização venusiana, era célebre. Cheguei a enviar uma carta assinada por um pretenso extraterrestre para uma revista de que se me esqueceu o nome, a qual foi tomada com algum grau de seriedade.
Contavam-se histórias de avistamentos de ovnis e todos tinhamos alguma para contar... Certa noite, deveria ser um helicóptero, suponho, todos vimos e perseguimos um objecto desses que nos sobrevoou em plena cidade do Porto, certamente com algo de importante a comunicar. No Alentejo, recordo-me, houve muito quem presenciasse o aparecimento de um ovni com a forma de uma foice e um martelo. Mas engraçado mesmo, era a quantidade de gente que passava as noites daquele Verão na Foz, observando cuidadosamente o planeta Vénus, com a convicção absoluta de que se tratava de um ovni que diariamente ali vinha realizar o seu vôo.
Enquanto alguns se odiavam, se roubavam e, por vezes, se matavam, o Verão Quente teve muita coisa gira...


Imagens de www.oldhippie.de, http://jak.jinak.cz, www.tabacaria.org e http://spacejay.com.

6 Comments:

At 10:34 da manhã, Blogger POS said...

Guerras civis? A guerra colonial foi uma guerra civil?... (as tretas dos historiadores chamam-se rigor...).

 
At 12:57 da tarde, Blogger Jorge Simões said...

Qual guerra colonial, meu? No que me diz respeito, a guerra colonial durou até 25 de Abril de 74. E estou-me nas tintas para o que os livros e professores te ensinem, porque tudo não passa de uma questão de nomenclaturas e as nomenclaturas mudam como o vento, ok? Obrigado por leres e abraço.

 
At 3:53 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Acho fantástico o teu testemunho nestes três artigos (até agora). Mas gostei menos das palavras aqui apresentadas: "Claro que os arrumadores, os hepatíticos, os sidosos, os desdentados, ainda estavam para vir e esses não tiveram relação directa com os "retornados"". Pode até ser preconceito meu, mas acho que não se fala assim.

 
At 4:02 da tarde, Blogger Jorge Simões said...

Dear anonymous,
palavras são palavras e, em princípio, surgem no momento em que faz sentido entrarem. Por si só, nada dizem. A interpretação das palavras está toda na cabeça do leitor. Abraço.

 
At 8:44 da tarde, Blogger POS said...

Ai, ai, ai!...

Ou a redacção da frase mudou, por milagre, ou (e admito que seja esta a verdade) eu hoje de manhã estava ensonado e li a coisa mal (era de manhã, que queres?...). Claro que assim faz sentido, se bem que um pouco de contextualização não fizesse mal (esta é para provocar).

E já que falo em provocações, aqui fica mais uma: como eu disse, és um furioso da escrita, um repentista, ou não vinhas com essa dos professores. O que eu comentei não tem nada a ver com professores, mas com a simples percepção da realidade.

E já que falo que falo em provocações, uma outra: quem escreve para ser entendido deve prever as interpretações dos leitores; claro que as palavras, até serem lidas, não passam de letras, claro que as letras não passam de... letras (aqui não faria sentido falar em riscos de tinta).

Abraço (e já sabes que estou a gostar destas prosas do Verão quente).

 
At 12:09 da manhã, Blogger Jorge Simões said...

Hello. Sim, eu sei, como te disse, é muito normal comentarmos coisas sem lhes termos dado a devida atenção. Only human...
Os professores? Hmmm... Sim, ok, sou um bocado furioso da escrita. Mas não deixo de dizer coisas com sentido... Ou quê? De qualquer forma, não escrevo como quem faz política. Bom, se calhar é mentira, mas não escrevo como um político do status quo, sinto-me mais útil a lançar umas bombitas para as carruagens dos imperadores, já que há pouca gente com espírito para isso actualmente e muito a quem fizesse bem ir pelos ares - "this is intended merely for entertainment purposes and the author cannot be deemed responsible for anything you may do or not, undo or not, kinda do or not, as a result of having read these totally fictional sentences*
Abraço e ainda bem que gostas destes testemunhos do passado recente como é impossível serem lidos em qualquer estudo de carácter mais científico - e que são verdade-verdadinha, no entanto...

 

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