It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

domingo, setembro 04, 2005

Um Hemisfério numa Cabeleira

O mais conhecido trabalho de Baudelaire, Les Fleurs du Mal, viu a luz do dia a 25 de Junho de 1857. Nessa altura, a obra foi considerada pela crítica jornalística (partindo do princípio - e aqui parece-nos bem que não - que pode haver crítica, leia-se análise, jornalística) como estando "repleto de toda a podridão do coração humano". O caso foi a tribunal e autor, editor e impressor foram condenados por "obscenidade e blasfémia". Seis poemas foram simplesmente cortados. Na óptica dos senhores magistrados - que Deus guarde as suas ossadas em sítio seguro - esses poemas contrariavam "as leis que salvaguardam a religião e a moralidade".
Já em 1869, dois anos após a morte do autor, foi publicada a obra Spleen de Paris/Petits Poêmes en Prose, uma autêntica pedrada no charco, que se pode com total justeza considerar o pai e a mãe de toda a poesia em prosa subsequente.
O texto que hoje vos trago é precisamente dessa obra. Bonito... Provavelmente inspirado por Jeanne Duval, uma mulata que conheceu quando do seu regresso dos Mares do Sul em meados dos anos 40, e que se manteve como sua companheira por cerca de 20 anos. Como está em francês e calculo que nem todos dominem bem a língua, o Master vai fazer o favor de elaborar uma tradução rápida para o português. Não se trata obviamente da tradução mais cuidada do universo (ao nível das dos reconhecidíssimos tradutores que decidem traduzir, por exemplo, Une Saison en Enfer, de Rimbaud, por Uma Cerveja no Inferno só para mostrar que sabem tanto, mas tanto, mas tanto, que até sabem que havia uma cerveja chamada Saison na época - e o nome da obra que se lixe!). Mas acho que o poema é tão bom que nem vai sofrer muito com isso...





Deixa-me respirar muito, muito tempo, o aroma dos teus cabelos, aí mergulhar todo o meu rosto, como um homem alterado na água de uma nascente, e agitá-los com a minha mão como um lenço oloroso, para sacudir recordações no ar.
Se pudesses saber tudo o que vejo! Tudo o que sinto! Tudo o que escuto nos teus cabelos! A minha alma viaja no perfume como a alma dos outros homens na música.
Os teus cabelos contêm todo um sonho, pleno de velas e de mastros; contêm grandes mares cujas monções me transportam até climas deliciosos, onde o espaço é mais belo e mais profundo; onde a atmosfera é perfumada pelos frutos, pelas folhas e pela pele humana.
No oceano da tua cabeleira, entrevejo um porto enxameado de cantos melancólicos, de homens vigorosos de todas as nações e de navios de todas as formas recortando as suas arquitecturas finas e complicadas sobre um céu imenso onde se aloja o eterno calor.
Nas carícias da tua cabeleira, encontro os langores das longas horas passadas sobre um divã, na cabina de um belo navio, embalados pelo enrolar imperceptível do porto, entre os vasos de flores e os jarros de água refrescantes.
No lar ardente da tua cabeleira, respiro o aroma do tabaco misturado com o ópio e o açúcar; na noite da tua cabeleira, vejo resplandecer o infinito do azul escuro tropical; nas margens de penugem da tua cabeleira, embriago-me com os aromas combinados do algodão, do almiscar e do óleo de coco.
Deixa-me morder por longo tempo as tuas tranças pesadas e negras. Quando mordisco os teus cabelos elásticos e rebeldes, tenho a impressão de comer recordações.



Informações retiradas de www.todayinliterature.com, www.biographybase.com e www.veinotte.com.
Imagem da divina Nicole Kidman de
www.girlswithcurls.com.

4 Comments:

At 4:43 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Compra uma bicicleta...

 
At 4:45 da tarde, Blogger Jorge Simões said...

Ó Maria, se quiseres oferece-me tu uma que eu não recuso. Estou a começar a ficar com vontade de deixar comentários construtivos no teu blog também... Beijinhos.

 
At 11:33 da tarde, Blogger Felipe Celline said...

Sempre venho aqui ler essa proeza!

Obrigado!

 
At 8:18 da tarde, Blogger Felipe Celline said...

Consegui, depois de algum tempo procurando, o livro deste poema, o "Pequenos Poemas em Prosa".
Estou transcrevendo todos os poemas para lá, caso interesse:


http://pequenospoemasemprosa.blogspot.com/

 

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