It takes two to tango

Quantas vezes a vida não parece mais estranha do que a ficção? Isso é porque toda a ficção se inspira directamente na vida! É porque somos todos medricas que costumamos optar pela ficção. Só que este blog vai optar pela vida... ou algo assim...

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Porque é que Clara Ferreira Alves prestou um péssimo serviço a Fernando Pessoa

Pela primeira vez, assisti a um dos documentários de defesa dos Grandes Portugueses na RTP - o que a jornalista Clara Ferreira Alves organizou para Fernando Pessoa.
Não gostei. Ou melhor, não gostei mais do que gostaria de qualquer documentário sobre Pessoa, porque sou fã de Pessoa e heterónimos e o meu voto está há muito decidido. Acho que isso é dizer que gostei pouco. Porque, colocando-me na pele de alguém com outra intenção de voto ou ainda indecidido, o documentário simplesmente nada acrescentou a nada e certamente não convenceu quem quer que fosse que Pessoa tenha sido um grande português. Pelo contrário, até deu a entender, por falta de habilidade, que o que Pessoa foi se fez em Durban, na África do Sul, resultado de uma cultura anglófona. Ora, que diabo de defesa é essa?
Gostaria também que Clara Ferreira Alves, se algum dia se dignasse visitar este espaço, me esclarecesse em que se baseou para afirmar cabalmente que Álvaro de Campos (heterónimo) era homossexual... Como Campos é uma personagem, Clara Ferreira Alves só poderá ter bebido a informação na própria poesia e, como conheço toda a poesia de Campos, devo confessar-me, se assim foi, muito distraído. Ou na biografia de Campos, escrita por Pessoa, e mais uma vez me devo confessar distraído. Resta-nos a correspondência do poeta. Será? Como a afirmação é rotunda e surpreendente, gostaria de saber...
Preciso, igualmente, de chamar a atenção da jornalista para o facto de que o poema Chuva Oblíqua é, como todos muito bem sabemos, de Pessoa, ele mesmo, e não de Álvaro de Campos. Que diabo de erro tão crasso!
Faço também questão de frisar que dizer que a Mensagem demonstra um "nacionalismo exacerbado" corresponde a uma escolha terminológica horrível, porque facilmente confundível com coisas do género nacional-socialismo. É suposto que os jornalistas saibam utilizar a linguagem...
Além disso, ainda, afirmar que Alberto Caeiro (heterónimo) foi um poeta "clássico" é um absoluto disparate. Caeiro foi, precisamente, o heterónimo sensível ao universo mas com pouca cultura, cansado de pensar, e rotulá-lo de "clássico", sendo que classicismo e neo-classicismo são correntes artísticas bem determinadas, revela, bom, falta de cultura.
Por fim, entre outros pormenores, sinto-me na obrigação de arregalar os olhos de horror perante mais uma afirmação da jornalista, a de que Álvaro de Campos considerou as cartas de amor "ridículas". Que distorção mais sem nexo! E, mais uma vez manifestando-me desiludido com o trabalho da jornalista, vejo-me forçado a concluir com o poema referido, no qual Campos afirma muita coisa, mas não, certamente, que as cartas de amor são "ridículas" assim, sem tirar nem pôr. Antes o oposto. Clara Ferreira Alves que estude melhor a lição, nomeadamente a lição das cargas de sentidos que as palavras transportam em si e dos sentidos que a sua aplicação pode desencadear em quem escuta...



Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos
São naturalmente
Ridículas).

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

O aborto

Sudoeste da Eurásia, ano de 5007

Uma cortante tempestade de areia varre, de ponta a ponta, o deserto do sudoeste eurasiático perto das ruínas de Portocalía. Jamsin Youdok vasculha o terreno teimosamente, mau grado a aridez e a tempestade, na sua teimosa convicção de vir a encontrar um resto, um resquício, talvez um escrito, talvez um artefacto, do tempo do Antes. Atingido em pleno rosto pela força que não parece aplacar-se, quase perde as esperanças por momentos. Subitamente, alguém entra esbaforido na tenda onde se abriga... É Alplaek, seu discípulo e, nos tempos mais recentes, o seu mais íntimo colaborador. Está corado de emoção. Esbraceja. Ofega.
Jamsin faz-lhe sinal para que se acalme. Que se passa? Alplaek ainda não está em si. Dar-lhe-ia um copo de água se a água não rareasse no local. Pede-lhe uma vez mais que se acalme. Em resposta, obtém um olhar esbugalhado. Atabalhoadamente, Alplaek estende-lhe um maço de folhas amarelecidas que abana febrilmente. Por fim, solta um suspiro e pede: leia! É de um tal Dan Brown!




Lisboa, 11 de Fevereiro de 2008

Cena de um centro de saúde lisboeta, local onde imperam a limpeza, o silêncio, a eficiência e a beleza...
Mulher - Estou muito satisfeita! Cheguei cá hoje de manhã, falei com uma equipa de médicos muito simpáticos que prontamente me atenderam e que imediatamente compreenderam o meu problema.
Rapariga adolescente, acompanhada dos pais - Ah, sim... E qual era, se não for indiscrição?
Mulher - Ah, bom, é que se me meteu na cabeça fazer um aborto mas, depois do acompanhamento personalizado a que desde logo tive direito, afinal opto por ter a minha criança.
Mãe da rapariga - Faz muito bem, muito bem... Principalmente porque o Governo do nosso bem amado primeiro tudo tem feito para incentivar a maternidade e a qualidade de vida das famílias. Ouvi, inclusive, dizer que, além da moradia que oferecem a quem opte por não abortar e da mensalidade de 5000 euros livres de impostos, vão passar a oferecer um Jaguar ou um Porsche à escolha.
Mulher - Ai, isso, como o nosso primeiro não há! É uma jóia de moço! E tão honesto!
Mãe da rapariga - Tão honesto, tão poupadinho e tão trabalhador! Olhe que não me lembro de um Governo com tantas leis!
Mulher - E a vossa menina? Alguma constipação?
Pai da rapariga (afagando risonhamente e em círculos a barriga da filha) - Oh, oh, oh! Não, não, a minha menina está com um tecido vivo na barriga e viemos cá fazer um aborto!
Rapariga - Pois. Não me apeteceu usar contraceptivo, é careta!
Mulher - Tirou-me as palavras da boca... careta! E uma situação dramática!
Mãe da rapariga - Sabe que desde que acabaram essas coisas do vão de escada...
Pai da rapariga - Desde que o nosso sistema de saúde passou a ser um exemplo para o mundo inteiro...
Todos juntos - Abençoado seja o nosso primeiro!
Enfermeira, atrás do balcão de atendimento - Amén!


Alplaek fita nervosamente Jamsin, como que aguardando uma resposta que este, emudecido de espanto e alegria, tarda em dar.
- É pena ser só isso mas... então? - interroga, com um ligeiro tremor de mãos.
Jamsin Youdok fita-o profundamente, ergue-se lentamente e, levando o maço de folhas acima da cabeça, exclama:
- Meu amigo, hoje fazemos história! Isto não é ficção! O documento que guardo nas minhas mãos entontecidas prova-o indubitavelmente: outrora, aqui floresceu um mundo civilizado a um ponto que nos custa mesmo a compreender!
- Um mundo civilizado! - acompanha Alplaek.
- Civilizado e perfeito! Temos tudo a aprender com esse esplendor que deu pelo nome de Portocalía! Hoje fazemos história! Assim se faz a história!



Imagem de www.igadi.org.

sábado, fevereiro 10, 2007

Maria da Fonte revisited

O povo é como um desses monstruosos elefantes da Índia de que tenho ouvido contar: de uma pujança indomável e de uma simplicidade risível, o mundo inteiro, pela violência, não o pode obrigar a caminhar contra a sua vontade, e uma criança, pela astúcia, obriga-o a fazer cabriolas grotescas. O povo tem a força de um elemento e um regimento não lhe pode impor uma ideia que um simples advogado hábil em declamação lhe faz aceitar sem esforço. Isto eram verdades já velhas no antigo mundo helénico. Os Polignacs, os Guizots, os Cabrais, são portanto culpados, não de falta de civilização, mas de falta de astúcia. Para que se há-de combater um monstro invencível, quando é tão simples iludi-lo?
(...)
Os políticos da geração moderna compreenderam e aceitaram a grave lição da
Maria da Fonte. O sistema da violência foi abandonado como inútil, e começou, com êxito, o dúctil método da habilidade.
O Conde d'Abranhos, com a sua alta intuição, sentiu que se estava preparando uma nova política, que, condizendo com o seu temperamento, seria o elemento natural em que a sua fortuna medraria como num terreno propício. Ele bem sabia que o Governo nada perdia do seu poder discricionário - mas que apenas o disfarçava. Em vez de bater uma forte patada no país, clamando com força: - Para aqui! Eu quero! - os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança própria e toda a admiração da plebe, curvando a espinha e dizendo com doçura: - Por aqui, se fazem favor! Acreditem que é o bom caminho!
Tomemos um exemplo: o eleitor que não quer votar com o Governo. Ei-lo, aí, junto da urna da oposição, com o seu voto hostil na mão, inchado do seu direito. Se, para o obrigar a votar com o Governo o empurrassem às coronhadas e às cacetadas, o homem volta-se, puxa de uma pistola - e aí temos a guerra civil. Para quê esta brutalidade obsoleta? Não o espanquem, mas, pelo contrário, acompanhem-no ao café ou à taberna, conforme estejamos no campo ou na cidade, paguem-lhe bebidas generosamente, perguntem-lhe pelos pequerruchos, metam-lhe uma placa de cinco tostões na mão e levem-no pelo braço, de cigarro na boca trauteando o Hino, até junto da urna do Governo, vaso do Poder, taça da Felicidade! Tal é tradição humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar um País, com o aplauso do cidadão e em nome da Liberdade.
Quantas vezes me disse o Conde ser este o segredo das Democracias Constitucionais: "Eu, que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a Soberania ao povo, que é forte e simples. Mas, como a falta de educação o mantém na imbecilidade, e o amolecimento da consciência o adormece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito... E quanto ao seu proveito, adeus, ó compadre!
"Ponho-lhe na mão uma espada; e ele, baboso, diz: eu sou a Força! Coloco-lhe no regaço uma bolsa, e ele, inchado, afirma: eu sou a Fazenda! Ponho-lhe diante do nariz um livro, e ele exclama, de papo: eu sou a Lei! Idiota! Não vê que por trás dele, sou eu, astuto manejador de títeres, quem move os cordéis que prendem a Espada, a Bolsa e o Livro!"
(...)
Tudo isto o sentiu num relance o Conde, quando, depois da Maria da Fonte, os ministérios da Força cederam o passo aos ministérios da Astúcia. A
Maria da Fonte foi a introdução no Estado de uma nova táctica social.



Eça de Queirós, in O Conde d'Abranhos