Nos lares, nas ruas, becos e avenidas, nos locais de trabalho e nos pontos de lazer, todos andavam algo confundidos com as cascatadas legislativas que não cessavam de diariamente jorrar dos paços ministeriais. Tanto mais que o sobranceiro edifício de mármores e tapetes vermelhos da Assembleia de Importantes Legisladores sempre parecia encontrar-se às moscas ou mosquitos...
Estaremos nós a ser governados por insectos?, interrogavam-se alguns.
É verdade que os insectos são animais imparavelmente velozes!, completavam outros. E todos pareciam mais ou menos satisfeitos. Ninguém, em todo o caso, iria perder a sublime comunicação esclarecedora que Sua Excelência, o primeiro sinistro faria, naquele dia, às populações. Estavam atentos todos os media e ainda os que tinham pertencido à classe média, além dos outros...
"Cidadãs e cidadãos... - principiou Sua Eminência Parda, pigarreando brevemente de seguida, como sempre faz quem tem coisas importantes a contar - Jamais governo algum trabalhou tanto como o actual! Trabalhamos de manhã, à tarde, à noite e ainda durante os intervalos! Se o país é uma máquina, seremos nós o seu motor! Que a ninguém restem dúvidas quanto ao que aqui vos afirmo: se o mundo é cão, eis-nos melhor entre os seus dentes do que na sua cauda! - sorriso e copo de água - Cidadãs e cidadãos: nós sabemos o que é melhor!"
Enquanto alguns aplaudiam o que desconheciam, outros faziam que ouviam. Outros ainda, outro ainda, pelo menos, ponderava o sábio discurso... Tratava-se de Zezé Sete, alguém que não contava entre os seus hábitos acreditar no que um canal de televisão lhe dizia. Saiu decididamente porta fora - tratava-se de um café até com mais do que uma porta, embora uma delas estivesse avariada e outra ainda perra - e dirigiu-se aos paços ministeriais. Chegado ao local, encontrou a entrada barrada por um guarda de facies buldoguiano.
"Quem passa?", rosnou o homem entre caninos.
Nunca se desfazendo, Zezé anunciou-se:
"Sou sub-assessor do assessor da sub-secretária do secretário do secretário de Estado do ministro".
Por breves instantes, o guarda aparentou alguma confusão... Computava os dados. Mas logo abriu alas para permitir a entrada do nosso Zezé. Ainda este não tinha dado três, quatro passos no interior e eis que o segurança se voltou, interrogando:
"Mas que assunto o traz?"
"Confidencial", explicou Zezé com uma expressão secreta.
"Ah! Bem vindo, então!"
E regressou à sua sólida posição estatuária.
O interior era uma confusão de gente que subia e descia escadarias, abria e fechava portas, e assim fazia sempre com uma rapidez inaudita, carregando pilhas de papeladas simplex debaixo dos braços e pronunciando estranhas sonoridades que assim pareciam: "
bip-bip!"... Por vezes, com nuances de sotaque ou estado de alma.
Como ninguém parecesse dar pela sua presença, Zezé foi subindo calmamente as escadarias até mais não poder. Estaria agora no sotão. Vendo sair, entrar e voltar a sair de uma alta porta de madeira respeitável alguém cujos papéis se acumulavam, decidiu-se a perguntar ao indivíduo com a máxima delicadeza:
"Desculpe, mas é que me perco sempre em tão complicada simplicidade... Onde se localiza o gabinete do conselho ministerial?"
"Bip-bip!", respondeu o interlocutor antes de rapidamente se ir perder no interior de outra porta. E antes que de lá saísse e noutra voltasse a entrar, Zezé compreendeu, graças à sua fabulosa mente prescrutadora, a mensagem: ao fundo do corredor, na terceira porta à esquerda.
Cuidadosamente, Zezé entreabriu a porta imensa. No interior, a escuridão era total. Tacteou em busca de um interruptor, utilizou-o, mas a escuridão persistia. Eis que a
qui não se faz luz!, concluiu o nosso herói.
Habituando a vista ao negrume reinante, chocou contra uma fotocopiadora de onde ininterruptamente voavam decretos-lei e ofícios de toda a ordem.
Estranho..., matutou, sabendo, no entanto, que estranho não é uma palavra portuguesa.
"Senhor ministro? Sua eminência?", interrogou baixinho e, de seguida, num crescendo, mas ninguém lhe respondia. E a papelada continuava a voar persistentemente da imparável fotocopiadora.
Aguçando o ouvido e a vista, pareceu-lhe escutar música proveniente de um pequeno canto luminoso, atrás da grande mesa de pé de galo, bem ao fundo da sala. Pé ante pé, decidido a não despertar suspeitas, aproximou-se e espreitou por sobre as costas de um cadeirão com uma perna colada... Um bando de ratinhos gargalhava finamente enquanto se balouçava ao swing de uma jazz band de ratazanas!
Com o choque de tal visão, apenas interrompida maniacamente pelo minimalismo repetitivo da simples fotocopiadora, Zezé desequilibrou-se, tropeçou no tapete e foi aterrar pesadamente sobre o conjunto da rataria que, sem tempo para o mais pequeno guincho, logo se desfez num
esguich! compacto.
Erguendo-se atarantadamente, Zezé compreendeu: havia, inadvertidamente, realizado um golpe de estado sanguinolento!
No dia seguinte, transportado em braços por um grupo de apoiantes ante as câmaras e microfones, dirigiu a sua primeira comunicação ao país:
"Cidadãs e cidadãos! Jamais governo algum trabalhará tanto como o meu! Ordeno-vos apenas que apertem um pouco mais os cintos, visto que a situação que o anterior governo nos legou é muitíssimo mais dramática do que alguma vez poderia ter imaginado!"
Palmas nos lares, ruas, becos, avenidas, locais de trabalho e pontos de lazer.
"Finalmente, sairemos da cauda da Finlândia!", exclamou agradadamente um frequentador do café do início da nossa reportagem a alguém que se encontrava na mesa mais próxima.
"Ganda Sua Excelência!", respondeu este prontamente. "Nunca nos enganou!"