J. encontra-se sentado sobre uma rocha lunar, no meio de uma planície lunar, no interior de uma cratera lunar, rodeado de fina poeira lunar. O céu alto e baixo, negro como só a noção de negro, assemelha-se a uma vasta mortalha de veludo, pontilhada de inúmeras lâmpadas perfeitamente estáticas, cada uma delas apontada na sua direcção. O imenso globo achatado e azul da Terra invisibiliza-se do outro lado do deserto.
Subitamente, um imenso objecto aterra num estertor silencioso, a não mais do que dez metros de distância, erguendo uma nuvem de poeira que logo inicia uma descida lenta, muito lenta, muito lenta, manchando a roupa que J. comprou recentemente, após meses de economias... Poderia ser um satélite perdido... Não. É o Dedo Divino! J. ergue-se com lentidão maior do que a de um sonho desagradável ou ainda do que o tempo que levaria a dizer o número 3,1416 até ao seu final...
DD - Arktzbxltmñökr!
J - Não entendi...
DD - Esqueci-me de ligar o tradutor, isto é linguagem sagrada, não podes entender. Bom, de que te queixas?
J - Não sei exactamente, é uma coisa um bocado complexa e entrelaçada. De que te queixas?
DD - Eu perguntei primeiro!
J - Porque é que estou a falar com um dedo?
DD - Dedo com maiúscula, se fazes o favor!
J - E então?
DD - É que é proibido falar comigo cara a cara!
J - Porquê?
DD - Já passaste a idade dos porquês! Eu fiz uma pergunta primeiro e tens obrigação de seres bem educado! De que te queixas?
J - Se te disser, ajudas-me?
DD - Depende do alcance da tua fé!
J - Como chegar daqui à Terra, ou a Vénus, ou a Mercúrio, ou ao Sol?
DD - Porta-te bem! Já te disse que depende!
J - Ajudas ou não?
DD - A ajuda está na fé!
J - Então... presumo que a resposta seja negativa.
DD - O que eu afirmo tem mais de mil sentidos!
J - Que bom... Serias capaz de descer ao meu nível e eliminar alguns deles?
DD - Não.
J - Não és omnipotente?
DD - Quando quero!
J - És ou não és?
DD - Só a Minha Palavra conta!
J - Mas a tua palavra tem mais de mil sentidos! Qual deles é que conta?
DD - Deixa que a tua fé te conduza!
J - O que é exactamente a fé?
DD - Não é explicável! Ou a tens ou não a tens!
J - Suponho que tenha alguma...
DD - Muito morno! De que te queixas, então?
J - Vais-me ajudar?
DD - Estás-te a repetir!
J - Tu também.
DD - Trata-me por Vós, que demonstra um respeito mais profundo!
J - Vós também.
DD - Gosto mais! De que te queixas?
J - Como é que sabeis que me queixo?
DD - Sabendo! Quando criei o Homem, criei-o queixoso!
J - Já me haveis ouvido queixar?
DD - Claro!
J - Quando?
DD - Quando, é absolutamente irrelevante! Nunca ouviste dizer que o tempo é uma ilusão?
J - E este sítio... é uma ilusão?
DD - Todos os sítios são ilusões!
J - Eu sou uma ilusão?
DD - Procura a resposta em ti!
J - Os meus órgãos internos, aquela dor de dentes que tive e a desgraçada da pedra no rim que já tive... são ilusões?
DD - Estás a passar das marcas!
J - Não vejo porquê...
DD - Mas estás!
J - Porque é que terminais quase todas as frases com uma exclamação?
DD - E tu, porque é que as terminas com uma interrogação?
J - Porque tenho perguntas a fazer...
DD - Não entenderias as respostas!
J - Bom, tendes ou não cura para os meus males?
DD - Não propriamente. É melhor consultares um especialista... A cura depende da tua fé!
J - Se me explicares, perdão, explicardes o que é a fé, talvez eu consiga fazer algo...
DD - Fizestes, perdão, fizeste bem em corrigir! A fé é não explicável, irracional!
J - Indicais-me que seja irracional?
DD - Como essa pedra na qual te sentas!
J - A pedra é real?
DD - Ilusão!
J - Bonito! Então, a fé é uma ilusão?
DD - A fé, a ciência, tudo!
J - Tudo é uma ilusão?
DD - Tudo é uma ilusão!
J - Vós sois uma ilusão?
DD - Eu sou uma ilusão de Mim Mesmo!
J - Deve ser por isso que estou aqui a falar com um dedo...
DD - Não menosprezes o Dedo Divino!
J - Não, não. Aliás, os dedos são muito importantes e servem para efeitos variados...
DD - Estás a ver?
J - Haveis substituído a exclamação final por uma interrogação!
DD - E tu terminaste com uma exclamação! Vê lá o tom que usas!
J - Bom, de volta ao que interessa: ajudais-me ou não?
DD - Já te expliquei que só tu te podes ajudar! Pareces lerdito!
J - Não é preciso ofender... Então, porque é que estamos para aqui a divagar?
DD - Pensei que acharias agradável dar um dedo de conversa... Aqui, perdido no meio do deserto lunar e tudo...
J - Estou cansado... Muito cansado...
DD - Então, dorme!
J - O chão é duro.
DD - A dureza é uma ilusão!
J - Bom, obrigado por tudo. Parece que não lidais com problemas comezinhos e é disso que eu preciso...
DD - Os problemas comezinhos são com as santas milagreiras! Eu sei delegar!
J - Então, as santas milagreiras existem de facto?
DD - Enquanto ilusões, claro que sim!
J - E o meu mal é uma ilusão?
DD - A resposta mora no teu interior!
J - Acho que entendi... Obrigado pela ajuda...
DD - De nada, sempre às ordens! Arktzbxltmñökr!
Rápida e silenciosamente, o Dedo Divino levanta vôo, perdendo-se na imensidão ilusória do cosmos ilusório. J. ergue-se muito lentamente em consequência da ausência de gravidade ilusória, tropeça num calhau ilusório, dá uma queda ilusória e rasga o joelho ilusório, de onde brota sangue ilusório.
J - Ainda bem que tudo é ilusório! Assim, já não tenho que me preocupar por não haver bons hospitais ilusórios nestas redondezas...
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