1 - Certo dia, numa terra tão distante que nem os próprios habitantes se apercebiam de que lá habitavam, Ananias, um responsável funcionário do rei Solução, acordou alagado em suor e tremuras, tendo sonhado que um exército de arcanjos de dentes aguçados se lhe dirigiam empunhando longas espadas de fogo encandeantes. No sonho, Ananias equilibrava-se com dificuldade no topo de uma ravina em forma de agulha, não logrando entender como poderia lá ter acedido e não encontrando forma de dali escapar.
2 - Ainda atordoado, Ananias ligou o televisor, mas o aparelho nada transmitia, salvo por letras de sangue que escorriam para o chão da sala, empapando-o e impregnando-o de um odor vagamente adocicado e enjoativo. Nas letras podia ler-se a palavra
Crise.
3 - Apressadamente, Ananias saiu à rua e por todo o lado encontrava rostos de desânimo. "Porque patenteias tamanho desânimo?", perguntou Ananias a um transeunte. "A minha mulher deixou-me, levando consigo os nossos filhos", lastimou-se o homem. "Disse que eu não trazia suficiente pão para nossa casa, chamou-me preguiçoso e partiu".
4 - Ananias ficou pensativo, lamentando a triste sorte do homem. Mais à frente, dirigiu-se a um segundo transeunte e interrogou-o: "O que te sucedeu para revelares a tão belo dia uma tão triste expressão?". "Recebi uma carta do meu senhorio, um velho agiota cuja casa tem paredes de mármore e chão de madeiras exóticas. A renda da minha modesta habitação duplicou e não sei como pagar. Em breve viverei debaixo de uma ponte", disse o homem, num tom de voz causador de profunda piedade.
5 - Cada vez mais pensativo, a caminho do pequeno cubículo do palácio onde trabalhava e cabalmente cumpria as suas funções, Ananias deparou-se com um terceiro transeunte e proferiu: "Impressionas-me com teus olhos lacrimejantes... Que misterioso desígnio inunda teu olhar?" "O meu posto de trabalho foi transferido para um local distante. Quando hoje pretendia meter gasolina no meu modesto veículo, apercebi-me de que não teria dinheiro para todas as deslocações que forçosamente deverei fazer. Assim, em breve estarei despedido por incumprimento e não terei sequer com que me alimentar, a mim e aos meus...", soluçou o homem.
6 - Um pouco adiante, Ananias encontrou um quarto transeunte, sombrio como os demais, a quem perguntou: "O que te torna tão sorumbático? Que desgraça te poderá ter ocorrido?" Ao que o homem replicou: "O meu trabalho tem-me permitido passar algum tempo com os meus filhos, a quem amo mais do que tudo no mundo. Dessa forma, tenho podido acompanhá-los de perto e transmitir-lhes o que de melhor aprendi. Mas, agora, o meu amo decidiu que deverei passar o dobro das horas no meu local de trabalho, deixando meus filhos entregues, entre todos, aos cuidados de uma instituição que os prende em pequenas salas quadradas onde nada do que é mais importante lhes pode ser transmitido. Morro de saudades antecipadas dos meus filhos e temo pelo seu futuro enquanto seres humanos condignos e independentes".
7 - E assim Ananias prosseguiu o seu caminho, interrogando alguém aqui, questionando alguém ali, a cada momento mais afectado pela tristeza com que por toda a cidade deparava.
8 - Finalmente chegado ao palácio, um imenso palácio todo caiado de branco e incrustrado de dourados, diante do qual se alongavam carros de luxo e choferes que ali aguardavam seus amos, Ananias pediu uma audiência ao rei Solução, um homem tido por sábio e que o tinha em conta por bons serviços prestados ao longo dos anos.
9 - "O que traz por cá, meu bom Ananias?", interrogou o rei, comodamente instalado no seu alto trono de ébano e ouro. "Sabes que a crise não me permite instalar-te o novo computador de que tanto necessitas..."
10 - "Nada de tão comezinho por cá me traria, senhor", respondeu Ananias que, então, começou a narrar tudo o que, naquela manhã, presenciara. "O que fazer, senhor? Rezar?", interrogou enfim.
11 - "Não", ponderou o rei. "Deus despreza os problemas materiais, pelo que não te dará ouvidos". Dirigiu-se a um imenso armário vermelho e do seu interior retirou uma imensa espada flamejante. "Pega-lhe...", convidou. "Sai à rua, bate à porta de cada casa que importe e traz-me as cabeças de todos os responsáveis".
12 - Inicialmente atordoado pela ideia, Ananias assim fez. Coleccionando cabeça após cabeça, com total aprovação do seu senhor e a ajuda de sua misteriosa espada de fogo, Ananias seguiu o seu caminho e regressou ao palácio com um enorme saco pleno de cabeças.
13 - Foi, então, recebido pelo rei que, com um sorriso de grande satisfação lhe garantiu: "Cumpriste bem meus desígnios, bom Ananias. Regressa agora a teu cubículo e entrega-te a tuas funções. Um dia, eventualmente podendo, de algum modo te recompensarei!"
14 - Ananias dirigiu-se à porta de saída, mas logo regressou nos seus passos. "Que desejas ainda, bom Ananias?", interrogou o poderoso rei. "Desejaria falar mais de perto com Vossa magnificência...", pediu Ananias.
15 - O rei aproximou-se confiante. Quando já muito próximo se encontrava, Ananias sacou de sua espada e fez voar a cabeça do soberano, que se foi depositar, vazia de vida, sobre o trono que ainda momentos antes ocupava.
16 - Preso pelas autoridades, Ananias viu-se cercado por milhares de jornalistas que se pisoteavam para obter uma declaração do homem que tantas cabeças arrebatara. "E agora?", interrogou um jornalista. "O que vai acontecer?"
17 - "Provavelmente nada", explicou Ananias. "Mas, então, qual a moral de tudo isto?", perguntou exasperado o jornalista. "A moral...", proferiu Ananias, subitamente elevado aos céus por populares que o haviam passado a carregar aos ombros ante as expressões de desespero das forças policiais, "... não é nada do que normalmente se poderia chamar moral. Apenas que os maus foram castigados, como nos filmes, em lugar de se manterem impunes, como na realidade".
18 - Assim foi. E condenado às penas infernais esteja quem ousar retirar ou acrescentar palavra ao que aqui se encontra dito. Palavra de Master.
(An. 1-18)