Camilo fecha as torneiras, sai cuidadosamente do duche, retira a toalha azul do suporte e principia a secar-se. A música na sala já se calou, o que significa que passou tempo demais na banheira, mau em tempos de crise e ecologicamente incorrecto. Mas, que diabo, há que ter alguns prazeres... Seca as orelhas relaxadamente. Subitamente, escuta-se o toque do telefone. Ora bolas! Mas nunca se sabe se pode ser importante... Embrulha-se na toalha e corre para o aparelho.
Camilo - Estou?
Voz (pingando sorrisos de tonalidades várias) - Bom dia! Estou a falar com o proprietário da casa?
Camilo - Hã, sim...
Voz - Tenho o prazer de falar com o senhor...?
Camilo (após uma breve hesitação) - Desculpe, quem fala?
Voz - Tenho a honra de falar com o senhor Camilo Peçonha?
Camilo (surpreendido) - Hã, sim, mas...
Voz - Espero que esteja a ter um dia fantástico! Ligo-lhe para lhe dar os parabéns!
Camilo - Não é o meu aniversário...
Voz - Pretendo transmitir-lhe os meus mais sinceros parabéns por ter sido escolhido, numa amostragem de centenas de pessoas, para ser o nosso feliz contemplado com um brinde fantástico!
Camilo - Desculpe, mas...
Voz - Somos uma multinacional de renome, presentemente em fase de implantação neste belíssimo país, e o senhor foi seleccionado para ser o primeiro a tomar contacto com os nossos produtos exclusivos e ainda receber, gratuitamente, um brinde fantástico!
Camilo - Desculpe, mas o meu número é privado. Como o conseguiu?
Voz - É certo que se sente muito feliz por assim ter acesso exclusivo a esta oportunidade única! A que horas poderei visitá-lo para o presentear com uma demonstração absolutamente exclusiva?
Camilo - A que...? Desculpe, mas não tenho tempo.
Voz (rindo) - Alguém com as capacidades do senhor sabe que o tempo faz-se! De manhã, à tarde, à noite, inclusive de madrugada, tenho o máximo prazer em o cumprimentar pessoalmente!
Camilo - Ouça... Não estou interessado.
Voz (rindo de novo) - Como pode não estar interessado se nem conhece ainda a nossa oportunidade única?
Camilo - Eu...
Voz - Claro que está interessado em receber, gratuitamente, um prémio de um valor fantástico! A senhora da casa está?
Camilo (friamente) - Sou divorciado.
Voz - Normalmente, gostamos de conhecer a senhora da casa... Mas temos o máximo prazer em lhe garantir que, no seu caso particular, especial, único e exclusivo, tal não constituirá qualquer espécie de impedimento, bem pelo contrário! Daqui a dez minutos, poderei ter o prazer de o cumprimentar pessoalmente?
Camilo - Já disse que...
Voz - Pois ficamos extremamente felizes por o encontrar tão receptivo! Até já!
Camilo (contendo um pouco a irritação) - Mas se já lhe disse que não estou interessado!
Voz - Como não está interessado? Foi escolhido entre milhares de portugueses dos extractos superiores para receber, num absoluto exclusivo inteiramente gratuito, um maravilhoso brinde, único e fantástico!
Camilo - Vou desligar.
Voz - Constitui para nós uma alegria imensa encontrá-lo assim receptivo à nossa oferta e posso garantir-lhe que não se arrependerá!
Camilo - Caramba, você não ouve nada! Não estou interessado, vou agora mesmo sair e não tenho tempo nenhum!
Voz - Precisamente! O tempo é você que o faz! Os meus mais sinceros parabéns! Estarei aí em dez minutos e estou duzentos por cento certo de que , ainda hoje, todos os seus amigos, familiares e conhecidos estarão a morrer de inveja de si!
Camilo - Bom, com licença, vou mesmo desligar...
Voz - Então, até já! Sinceros parabéns!
Camilo (visivelmente irritado) - Com licença!
Pousa o auscultador energicamente. Malditas vendas por telefone! Regressa ao quarto de banho onde o vapor já se dissipou e recomeça a secar-se. Veste-se. Penteia-se. Toca a campainha. E agora, quem diabo será mais?
Voz (agora com um rosto de onde sobressai inteiramente o sorriso, estendendo firmemente a mão) - Muito bom dia e uma vez mais os meus mais sinceros parabéns! (estica o pescoço para o interior da casa) Posso entrar?
Camilo (espantado por o ver entrar antes sequer de obter resposta) - Ouça, senhor...?
Voz (irrompendo já pela sala de estar contígua) - Ora muito bem, excelente, excelente!
Camilo (segurando a porta da saída) - Caro senhor, agradeço-lhe que se retire!
Voz (enquanto despeja na carpete uma quantidade considerável de bugigangas, cuja utilidade real não se compreende) - Peço-lhe, então, senhor Camilo Peçonha, que me empreste a sua atenção máxima, uma vez que toda a sua futura felicidade, todo o seu futuro bem-estar, dependerão das opções que agora realizar!
Camilo (cada vez mais exaltado) - Quer fazer o favor de se retirar? Já lhe disse vezes sem conta que não estou interessado!
Voz - É assim mesmo, senhor Camilo Peçonha! Aprecio sempre alguém que, como o senhor, vai à luta, sabe o que interessa, reconhece as oportunidades e as agarra com unhas e dentes! O senhor é especial!
Camilo (dirigindo-se para o telefone) - Vou chamar a polícia... Que é isto? O telefone não funciona?
Voz - Tenho o maior prazer em lhe anunciar que tomámos a liberdade de lhe desligar o telefone para que nada de menos importante o possa distrair da verdadeiramente fantástica oportunidade a que o senhor Camilo Peçonha, seleccionado entre milhões de portugueses, tem a felicidade de ter acesso!
Camilo (aproximando-se com ar ameaçador) - Eu não costumo recorrer à violência, mas...!
Voz (desviando-se elasticamente e agarrando um saco cheio de pó, cujo conteúdo espalha sobre o sofá, a poltrona, a mesa e a carpete) - Faz muito bem em não ser violento, caro senhor Camilo Peçonha! Só a verdadeira inteligência conquista o mundo! Congratulo-me imensamente por verificar que é inteligente e conquistador!
Camilo (levando as mãos à cabeça, em atitude de desespero) - Que é que me fez à sala?
Voz (pegando num martelo e escavacando metodicamente o ecrã do televisor e os vidros da porta que dá para uma pequena varanda) - Nunca, senhor Camilo Peçonha, irá o senhor esquecer este momento inolvidável! O momento absolutamente único em que constatará a total eficácia do nosso produto e o valor incalculável do brinde exclusivo que para si reservámos!
Camilo (quase saltando no lugar) - É demais! Faça o que quiser! Vou-me embora! (dirige-se para a porta) Que é isto? A porta não abre?
Voz - Tenho o maior prazer em lhe anunciar, senhor Camilo Peçonha, que lhe encravámos momentaneamente a porta, para que nada de menor importância o possa distrair da fantástica demonstração a que seguidamente assistirá e que o deixará estarrecido por muito e muito tempo!
Camilo (lançando-se à voz de punhos fechados) - É demais!
Voz (desviando-se elasticamente e derramando líquido radioactivo sobre os móveis da sala) - Que alegria! Não é todos os dias que tenho o prazer imenso de contactar com alguém dotado de uma mente superior, como é o caso do senhor Camilo Peçonha! Sinceros, muito sinceros parabéns!
Camilo (frustrado e irritado) - Bolas! Mas, afinal, de que manicómio é que você se escapou?
Instala-se um breve silêncio. A Voz torna-se lúgubre.
Voz - Não há necessidade de recorrer a insultos! Achamos que ajudamos os outros e depois é... sempre isto! Ofereço-lhe a oportunidade de uma vida, uma oportunidade pela qual milhares de milhões de portugueses se bateriam e responde-me dessa forma?
Camilo (frisando cada sílaba) - Não estou interessado!
Voz (dirigindo-se à porta, numa postura muito erecta, com uma expressão de profunda e grave ofensa) - Julguei-o muito mal! Trata-se de alguém que não demonstra o mínimo respeito pelos outros! Muito bom dia!
Retira-se, fechando solidamente a porta atrás de si e some-se escadas abaixo. Camilo demora-se uns instantes, mudo e paralisado, a olhar para a sua sala de estar, o pó espalhado, os vidros escaqueirados, o líquido radioactivo derramado... Subitamente, corre para a porta, voa para o corrimão e lança, para o fundo das escadas, onde a Voz já chegou...
Camilo - Espere! E o brinde fantástico que me prometeu?
Voz (afastando-se) - O brinde, reservamo-lo para os nossos clientes, perspicazes e merecedores! Muito bom dia!
Fecha-se a porta da rua. Camilo, regressa à sala e percorre-a silenciosamente, de braços atrás das costas. Seguidamente, vai-se deitar de novo, esperando poder vir a acordar de um daqueles pesadelos absurdos que, obviamente, nada têm a ver com a vida real...