Imaginem a seguinte história, absolutamente hipotética...
No início do Verão de 2005, um grupo de amigos decide fazer uma festinha ocasional em casa de uma das amigas. Come-se, bebe-se, conversa-se, bebe-se e fuma-se, numa palavra, faz-se uma série de coisas que sempre foram tidas por normais, mas que talvez qualquer dia sejam todas proibidas.
Às páginas tantas, os amigos sobem para o sótão, onde seria suposto dançar um bocadito, à maneira das festas de antanho, quando ninguém chateava ninguém e as pessoas se compreendiam razoavelmente. A dança até acaba por não pegar porque "os vizinhos isto e os vizinhos aquilo". Certo. Põe-se a música - no sótão, insisto - mais baixa. Nessa altura, um de nós pega na sua guitarra e começa a cantar e a tocar para o grupo. É necessária alguma atenção, uma vez que, como se diz, "guitarra toca baixinho".
E eis que, em lugar da guitarra, soa a campainha... A dona da casa e mais um par de amigos vão abrir. São dois agentes da lei oficial, mal encarados, como convém. Foi apresentada uma queixa anónima contra o barulho. A dona da casa promete parar a música de imediato e queixa-se apenas do facto de ninguém se ter dignado vir falar sobre o caso antes de optar por chamar os guardas.
Passa o tempo...
Abril de 2006. A dona da casa recebe uma contra-ordenação, intimando-a a pagar uma multa no valor aproximado de 500 contos (escrevo em moeda antiga para que se entenda melhor), quantia módica para os portugueses actuais, em função da queixa anónima apresentada. Do relatório de um dos agentes da lei oficial, consta que a multada se terá insurgido, afirmando não fazer ideia de que não se podia fazer barulho a partir de uma dada hora. Os agentes da lei oficial moldam os factos a seu jeito e transformam-se, assim, em agentes da mafia oficial.
Gostaram da história?
Eis o que me traz à memória outra história hipotética... Um grupo pequeno de amigos vai ao cinema e, de regresso, passa por casa de uma das amigas para um copito, ainda legalmente permitido. Conversam, normalissimamente, nunca levantam a voz, não se passa mesmo nada. Entretanto, um anónimo deixa um bilhete na porta, no qual se pode ler: "Faça o favor de não transformar a sua casa numa ilha afrodisíaca!". Lol, não é? Bom, pelo menos, não chegou a chamar os agentes da lei oficial...
E, caramba, é só histórias, assim de repente, a surgirem-me na memória, diabo de memória, devo ser demasiadamente criativo! Imagino um indivíduo que se recém-separou e teve que se mudar para um andar alugado. O "dono" do condomínio é-o desde há 11 anos, altura da construção do prédio em causa. Sente-se dono do prédio e fala com todos como se sentisse dono de todos. A acrescer, o senhor, que mete uma pena infinda pelo facto de usar umas canadianas, está encarregado pela dona do andar em questão, que se encontra em, digamos, França, de tratar de todos os assuntos ligados ao aluguer caríssimo - como convém e é justo. Certa noite, o inquilino, não bateram ainda as dez badaladas no relógio de uma torre qualquer, a Torre de Londres, por exemplo, saca a sua guitarra e começa, não a tocar, simplesmente a arranhar umas cordas, enquanto olha para o televisor e pensa na vida. Trrrrim! É o "dono" do prédio. Mal encarado, à maneira dos agentes da lei oficial e como convém, vai dizendo que não se pode fazer barulho à noite e explicando que se o inquilino não está satisfeito, o contrato pode resolver-se, sem problemas, a qualquer instante. Mesmo por cima da sala, ouve-se o ruído de uma telenovela brasileira, com os seus dramas e exageros tão apreciados pelas populações latino-americanizadas, precisamente em casa do senhor das canadianas.
Eu sei que nenhuma destas histórias pode ser verdadeira. Nenhuma delas faz sentido, naturalmente. Mas sinto os cabelos levantarem-se só imaginar as cenas que acabo de narrar (tenho uma imaginação muito vívida)!
Subitamente, chegam-me memórias, desta feita verdadeiras, do tempo dos nossos pais - e nossos, só que éramos mais novos... Memórias das festinhas que se faziam. Do passear pelas ruas nas noites de Verão. De tanta coisa... E, é engraçado, não me lembro da existência de anónimos frustradotes e (perdoem-me o termo, sei que não costumo usar este género de calão, mas a minha imaginação indigna-me e mexe de tal forma com os meus neurónios que fico, por momentos, inimputável) filhos da puta a precisarem de ser enrabados até ao cimo da garganta!
O que mereceria esta laia se, por acaso, existisse? Que os visados os apanhassem numa esquina e lhes abrissem a cabeça de marisco a meio e sem redenção? Pelo menos, levar em cima com uma montanha regular de queixas anónimas?
Isto, meus caros, é o Portugal de hoje em dia. O pior é que tenho a sensação de que isto já só vai ao sítio com um novo dilúvio! Permitam-me afirmá-lo enquanto uns iluminados não encerram de vez os blogs e tudo o que se possa opor à perfeita ordem instituída.